São Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 1995
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A privatização da Vale

SÉRGIO MACHADO

Chega a ser irônico recordar o passionalismo que marcou o início das privatizações no Brasil. Cada leilão era uma verdadeira guerra, com mandados judiciais de última hora e manifestações violentas diante das Bolsas de Valores.
Hoje, os leilões de privatização acontecem em tranquilidade e já não despertam as raivosas e equivocadas reações de alguns anos atrás. Há um entendimento generalizado da opinião pública brasileira de que privatizar não significa abrir mão da soberania nacional ou sucatear o patrimônio público.
É uma imposição prática do esforço de se direcionar os escassos recursos do Estado para a melhoria de vida da população. Administradores públicos de todas as colorações ideológicas, no Brasil e no mundo, conjugam do mesmo diagnóstico.
Agora que chegamos na reta final para a privatização de uma das mais eficientes e valiosas estatais do país, a Cia. Vale do Rio Doce, volta à tona um pouco do emocionalismo do passado recente, o que pede, novamente, uma reflexão objetiva e serena.
O fato de a Vale ser um modelo de eficiência -é a maior exportadora mundial de minério de ferro- não deve de forma alguma prejudicar o projeto de privatizá-la. Privatiza-se não só porque existem estatais mal administradas e deficitárias, mas, principalmente, porque o Estado tem hoje poucas condições de investir em negócios tão complexos e ambiciosos, que acabam sendo prejudicados por essa falta de capacidade.
No caso da Vale, onde o Estado brasileiro tem 51% do controle acionário, há ainda o agravante de que os dividendos recolhidos ao Tesouro Nacional não condizem com o valor das ações. Ano passado, esses dividendos mal ultrapassaram os R$ 100 milhões.
Como bem lembrou o presidente Fernando Henrique, ``enquanto isso, faltam ao setor público recursos para financiar adequadamente a educação, a saúde e obras essenciais para o desenvolvimento regional, e o mesmo Tesouro é obrigado a tomar recursos no mercado a taxas de juros elevadíssimas para rolar a dívida interna".
Critica-se o fato de que a Vale é detentora de reservas minerais com potencial de mais de 400 anos de exploração e que seria um risco estratégico deixá-las com a iniciativa privada. Estudo feito pelo geólogo Hélio Blak, diretor da área de infra-estrutura do BNDES, mostra, contudo, que o potencial mineral das reservas da Vale só se realizará na medida em que houver disponibilidade de investimento para explorá-lo.
Hoje, por exemplo, a Vale lavra reservas de apenas 1,1 bilhão de toneladas de minério de ferro, quando calcula-se que dispõe de 18 bilhões de toneladas em Carajás, ``cujo aproveitamento depende fundamentalmente da elasticidade do mercado internacional e, mais particularmente, da capacidade de ampliação da parcela da Vale no mercado de que hoje já é líder".
Mais importante do que essa avaliação técnica é a forma como se pretende passar esse imenso patrimônio para a administração privada. Aí é que reside a chave desse debate. O modelo de privatização da Vale definirá claramente as condições de como as reservas serão exploradas. E as reservas minerais da empresa, é fundamental que se diga, não pertencem a ela. São monopólio da União, conforme definição constitucional, cuja exploração se dá mediante concessão do poder público.
Portanto, mesmo com a privatização, as reservas minerais da Vale nunca deixarão de ser patrimônio brasileiro, o que dará ao Estado todas as condições para monitorá-las.
No Congresso, representantes dos Estados onde a Vale tem atuação mais destacada temem que sua privatização possa significar retração do papel que a empresa desempenha no desenvolvimento de suas regiões. Ora, o simples fato de que a capacidade de investimento da Vale aumentará com sua administração pelo capital privado indica o contrário. Como já dissemos, o modelo de privatização definirá de forma objetiva o papel desenvolvimentista da empresa.
O fundo de desenvolvimento mantido por uma parcela do lucro líquido da Vale, por exemplo, deve ser preservado. E é bom que se diga que as fábricas, lavras, portos etc. da Vale continuarão onde estão. Se a Vale investiu nos Estados onde hoje sua presença é tão importante nas economias locais, foi por razões empresariais. Isso não deixará de acontecer no momento em que a empresa estiver privatizada.
É legítimo e essencial o anseio dos congressistas em participar do debate sobre o modelo de privatização da empresa. Mas devemos ter a sabedoria de não tomarmos qualquer atitude que possa sinalizar para os investidores nacionais e estrangeiros, interessados em alavancar os recursos que o país precisa para seu desenvolvimento, que o processo de privatização no Brasil pode sofrer solução de continuidade.
A criação de uma comissão mista do Congresso, integrada por deputados e senadores, com a atribuição de acompanhar e opinar sobre a privatização da empresa, aparece como a solução mais adequada. A privatização propriamente dita só deverá acontecer no segundo semestre do próximo ano, o que dará todas as condições para se incorporar a opinião do Congresso.
A Vale é fruto de uma etapa da economia brasileira em que o desenvolvimento dependia basicamente do investimento do Estado. A realidade mudou radicalmente. O Estado empresário deve dar espaço ao Estado promotor de políticas sociais. Por isso, como a Vale é um fruto valiosíssimo, construído com esforço e competência, ela deve e será negociada nas melhores condições possíveis, a fim de que os recursos da sua privatização dêem o máximo de retorno social.
Ninguém de bom senso pede uma privatização selvagem. Nem a opinião pública permitiria. Mas vamos encarar de frente o desafio de modernizar a economia do país e melhorar a vida do cidadão comum.

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