São Paulo, terça-feira, 17 de outubro de 1995
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Finley busca caminho entre Deus e liberdade

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

A americana Karen Finley é o que se costuma descrever como uma católica praticante. Vai à missa regularmente, reza regularmente e se revolta com o papa. Mais da metade dos católicos americanos, segundo pesquisa feita antes da visita de João Paulo 2º a Nova York, duas semanas atrás, não concorda com o Vaticano em questões como sexualidade e aborto.
Karen Finley, com a consciência de uma pregadora, sobretudo com a oratória de uma, expressa com radicalidade a discordância.
``A Certain Level of Denial", mostrada no Sesc Pompéia, como parte do festival de artes cênicas, é uma peça de oratória. Em diversos sentidos, está tão próxima de um sermão quanto o ``Sermão da Quarta-feira de Cinza" do Padre Vieira, apresentado por Pedro Paulo Rangel há mês e meio em São Paulo.
Estão lá o mesmo objetivo de mudar as pessoas pela força do verbo, o mesmo tapa na cara com as palavras, a mesma confiança de estar levando a verdade, a ponto de repetir e repetir e repetir, como em algum terço, ou ainda como em alguma obra barroca.
Repetir e repetir, para colar a mensagem na memória do público e fazer com que ele se mova, fazer com que ele tome consciência. Também para alcançar pela verborragia, como acontece com os católicos carismáticos, pentecostais, o desprendimento, o transe. Um ritual do verbo, diante do público.
O que motivou a criação de ``A Certain Level of Denial" foram as mortes de dezenas de amigos de Karen Finley, alguns muito próximos, todos de Aids.
Um deles, o ator Ron Vawter, podia ser visto nas imagens de televisão apresentadas pelo grupo Wooster, no espetáculo mostrado também pelo Sesc, mas no teatro Anchieta, no início do ano. ``A Certain Level of Denial" foi dedicado a ele. E o cantochão de abertura do espetáculo parece falar dele ao público americano, mais até, ao público nova-iorquino.
``Alô mãe, o seu filho está morrendo!", chora ela, repetidamente, convulsivamente. ``Alô vocês do East Village, com pais ricos! O seu amigo, o seu artista está morrendo. Alô sociedade! Nenhuma resposta. Alô América! Nenhuma resposta."
A partir daí, da Aids, Karen Finley segue para falar das mulheres, levando a revolta ao excesso, ao confronto, segue para falar dos negros, dos homossexuais, segue para falar da natureza e da ecologia.
O que poderia ser uma revista do politicamente correto, com esquetes em defesa de todo gênero de minoria ou de causa liberal, surge como instantâneos de iluminação a cada nova passagem.
Assim, até mesmo a morte de um filhote de cervo e sua mãe, vista pelos olhos de uma criança, sempre a própria Karen Finley, que em momento algum se veste de personagem, é impressionante, um momento de sagração.
É como se a artista, a exemplo de Jó, estivesse questionando o próprio Deus quanto ao que assistiu durante anos na Terra, de preconceituoso, desumano, moralmente ou fisicamente criminoso. Fisicamente... Uma artista plástica, originalmente, Karen Finley leva ao palco uma insistência, quase uma obsessão com o corpo.
Ela já surge nua, exceto por um chapéu e sapatos, vestindo-se aos poucos durante a apresentação. Nos seus quadros, que servem de cenografia, é o corpo que aparece sempre como foco, em conflito com a temática estética católica.
Sem medo do conflito, ela busca um caminho entre Deus e a liberdade.

Peça: A Certain Level of Denial (Um certo nível de negação)
Direção: Karen Finley (EUA)
Interpretação: idem
Quando: última apresentação hoje, às 21h
Onde: Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, Pompéia, tel. 011/864-8544)
Ingresso: R$ 20 (R$ 10 para estudantes, comerciários e classe artística, mediante identificação)

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