São Paulo, terça-feira, 17 de outubro de 1995
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Caretas e desbundados continuam atuantes

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Pior que careta, só muito louco" - Haroldo Marinho, cineasta
O mundo era dividido não só em socialismo e capitalismo, não só em ricos e pobres, não só em Primeiro e Terceiro Mundo, não só em direita e esquerda. O mundo em Ipanema era dividido em "caretas" e "desbundados". Isso no início dos 70's. Não havia uma palavra boa para designar o oposto de careta. "Desbundado" ou "mutcho louco" seriam termos fortes. Nos USA tínhamos o "square" e o "hipster". O "hipster" veio antes da "beat" generation e os "hippies". Talvez esta palavra seja o melhor antônimo de careta. "Hipster" vem de "hip", quadris, o jeito de andar com os quadris encaixados como um gato, "a cat-like walk from the hip", como disse Norman Mailer, ao contrário do careta que andava com "a bear-like walk from the shoulders" (um andar de urso que sai dos ombros).
Hoje com o fim da "era ideológica a fronteira entre caretas e "muito loucos" ficou tênue. E, no entanto, este maniqueísmo da alma, este dualismo da cultura da droga continua utilíssimo para sacar a vida política atual. Muita gente que se diz de "esquerda" é careta; e gente que posa de "mutcho loco" é de direita. Antes, os caretas e "mutcho loucos" eram mais ideológicos. Havia certa analogia entre careta e conservador, entre muito louco e progressista. Hoje temos revolucionários caretas e doidões conservadores, esquerdistas lutando pelo Sistema e direitistas com arejamentos. Assim como a burrice é eterna, caretice também é. Assim como muito hippie quis subir na vida e virou "yuppie", muito rico resolveu comprar a beleza do desbunde a qualquer preço. "Diz, diz, você me acha careta?" me inquiria desesperado um ricaço paulista. "Não; é claro que nãããoo...", menti, pusilânime, olhando para o cara de terno e rabo-de-cavalo. É maravilhosa esta combinação: gravata para a vida real e um cacho de loucura no cabelo, como a dizer: "Estou no mercado, mas preferia estar curtindo". A burguesia quer tudo, até a liberdade.
E pensam, como acusava Oswald, que o contrário do burguês é o boêmio. O contrário é o proletário.
No Rio, boemia e burguesia se misturam mais que em São Paulo. É mais difícil de ver, o careta carioca. Ele se disfarça em gargalhadas, simpatias, dialéticas da malandragem. Em São Paulo, o careta é mais encontradiço. Há mesmo a beleza tradicional da caretice de 400 anos que se vê nas duras noites de brilhantes e Chanel, nos risos das colunas e nos bigodões-Fiesp dos clubes fechados. São lindas aquelas festas de sorrisos gelados, aquela tensão, nos palacetes, faiscantes de jóias e jaquetões.
Esquerdismo e direitismo eram capas externas que vestiam as almas. Já tivemos um leninismo tipo importação, que chegava de avião, pela alfândega, tão postiço quanto o neoliberalismo fácil de hoje. Já fomos "contraculturais" de butique, ridículas cópias de um desbunde que não era o nosso, dramática tentativa do mendigo se travestir de "hippie". Não tínhamos o que consumir e éramos contra o consumo. Se o voto de pobreza dos hippies tinha sentido numa sociedade rica como os USA, aqui virou coisa de faquir mesmo, o sujeito se recusando a comer numa terra de famintos. Em suma, tanto o careta como o "mutcho loco", tanto o leninista quando o liberal dos 70 eram "idéias fora do lugar". E não me venham os liberais cantar ciência hoje em dia; eram liberais por subserviência ideológica a Escola de Chicago sim, tanto quanto um "pecebê" era vidrado na URSS. Hoje, acabou a nitidez maniqueísta. Somos caretas ou não, de dentro para fora, mais endógenos. Mesmo assim, caretas e desbundados são ótimas categorias para entendermos a vida do país. Por exemplo: Collor não era careta, mas era de direita. Lula não é careta, mas o PT está cheio de caretas e direitistas. Ahh... que falta faz um LSD no "ponche" de Ki-suco na reunião do Comitê Central.
Há 35 anos, Norman Mailer fez um famoso ensaio que permanece atual: "The White Negro", traçando a psicologia dos "hipsters que então começavam a corroer a "geração silenciosa" de Eisenhower. Seus filhos foram os "beats", barbudos e paranóicos, depois vieram os "hippies", pacíficos e bobos, depois nasceram os "yippies" (quem lembra?), políticos radicais liderados pelo Rubin e Hoffman (morreram os dois de terno na era Reagan). Por fim, vieram os "punks" e os "yuppies", o maniqueísmo final, inferno e céu, bem e mal ou vice-versa. Agora, temos os recentíssimos "slackers", dos quais Kurt Cobain é o inspirador e o Beavis e Butthead a caricatura; os "Slackers", com doce charme de suicidas, melancólicos e alienados do mundo por escolha. Mas, através destas duplas de antônimos durante quatro décadas estão lá as categorias primevas: caretas e "mutcho locos". Estes dois estados de alma resistem através das mutações ideológicas. Vejam como a lista que Norma Mailer elaborou há quase 40 anos se aplica à vida brasileira.

"Hipster"
romântico
instinto
perverso
espontâneo
meia noite
niilista
associativo
uma pergunta
eu
bandido
livre arbítrio
santo
eidegger
o corpo
cálculo diferencial
Marx psicólogo
Thelonius Monk
Trostsky
Dostoyevsky
call girls
dialético
bárbaros
o presente
Picasso
sexo pelo orgasmo
pecado
graça
assassinato
psicopata
orgia
homossexualismo
maconha
motocicleta
nuance

Careta
clássico
lógica
piedoso
organizado
meio-dia
autoritário
sequencial
uma resposta
sociedade
polícia
determinismo
padre
Sartre
a mente
geometria analítica
Marx sociólogo
Dave Brubeck
Lenin
Tolstoy
psicanálise
linear
boêmios
o passado e futuro
Mondrian
sexo pelo ego
salvação
força
suicídio

Brevemente farei uma lista brasileira. Ou será que é impossível, porque viramos todos caretas?

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