São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
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'Underground' chora fim da Iugoslávia

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Underground", vencedor da Palma de Ouro de Cannes-95, é um filme contra a corrente. Numa era de ardor minimalista e renúncia ao político, Emir Kusturica registra numa fábula barroca e vulcânica cinquenta anos de história de sua extinta Iugoslávia natal.
"Era uma vez um país...", afirma a última cena. Kusturica faz uma ponte entre a Segunda Guerra Mundial e a atual guerra civil na Europa central. "Underground" segue a trajetória de dois amigos espertalhões. Marko (Miki Manojlovic, soberbo) passa, num piscar de olhos, de ladrão barato a herói da resistência antinazista. Seu comparsa Blacky (Lazar Ristovski) também vira mito ao darem-no como morto.
É apenas o começo de uma farsa de longa duração. Marko tranca por vinte anos Blacky e familiares num porão, ocupando-os numa fábrica de armas pretensamente para a resistência de uma guerra que já acabou. Marko enriquece, herda a namorada do amigo, vira intelectual-padrão do regime socialista de Tito.
A história "heróica" de seu grupo pauta até enredo de uma superprodução oficial. Enquanto a lenda vira filme, um acidente destranca o porão. Numa exemplar utilização dramática da metalinguagem, Kusturica faz Blacky saltar de uma ficção (o "bunker" resistente) a outra (a fita em que é personagem destacado). A grande mentira de Marko cai por terra. Outras não tardarão.
Um salto no tempo descobre em 1992 Marko e Blacky na Iugoslávia esfacelada após a morte de Tito (1980) e a queda do bloco soviético (1989). O primeiro continua enriquecendo com a indústria de armamentos; o segundo assumiu a persona de eterno combatente.
A conclusão é irônica e amarga, mas Kusturica ao fim não se rende em sua utopia da volta de uma Iugoslávia única, pacífica e alegre, marcada por famílias enormes, comunidades multiétnicas e festas com música cigana.
Ao receber sua segunda Palma de Ouro (a primeira foi para seu tocante "Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios", em 1984), o próprio Kusturica reconheceu ter "Underground" um grave problema de ritmo. Uma festa de casamento, pecado maior, arrasta-se por quase meia hora no miolo do filme. O cineasta assumiu o exagero. Depois da Cannes, levou o filme de volta à moviola. A nova versão, mais enxuta, ainda não foi lançada. A Mostra exibe "Underground" em sua duração original de 192 minutos.
Seja como for, o excesso é parte essencial do impacto do filme. Kusturica lembra o Glauber visceral de "Deus e o Diabo Na Terra do Sol" ao encher as telas de um furacão de cores e músicas para chorar a violação dos bálcãs. "Nasci num país onde esperança e alegria de viver eram mais fortes que tudo -que o mal inclusive", diz Kusturica. Sua nostalgia por ele encontra em "Underground" a melhor tradução.

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