São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
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O "pato" social

JACK STRAUSS

Quando Betinho fixou na consciência popular o número de 32 milhões de miseráveis, ficou decretada a nova era no tratamento desse gigantesco segmento da população. Foi preciso chegar a esse número alarmante para que a sociedade se mobilizasse com o apelo emergencial e se conscientizasse da falência do modelo social no Brasil.
Naquele momento, e sempre em momentos como esse, alguns governantes se lembraram de que a iniciativa privada é a tábua de salvação. Fica a impressão de que esses governantes pensam mais ou menos assim: nós governamos, abusamos, desviamos, urgenciamos e na hora certa vocês, empresários, pagam o pato, sob o discurso moderno das grandes parcerias.
Desta vez, a sociedade civil organizada, cansada dos discursos, está dando uma demonstração de organização, invertendo as posições e assumindo o gerenciamento da miséria no Brasil.
As entidades empresariais, religiosas, clubes de serviço, lojas maçônicas, organizações de auxílio, sindicatos, centrais sindicais, associações profissionais estão se organizando numa velocidade nunca antes vista. Os resultados, ainda tímidos, dão uma demonstração do que poderá ser feito pelo povo.
A cidade de São Paulo, que tem quase 10 mil moradores de rua adultos perambulando diariamente ao nosso lado, já atende com alimento esses cidadãos e se prepara para ajudar no resgate mínimo da cidadania desses miseráveis.
Ruy Barbosa disse que "os famintos não fazem revolução, os famintos morrem de fome", e a revolução dos famintos está sendo feita pelos indignados.
Está sendo construído na Baixada do Glicério, embaixo de um viaduto, o primeiro centro de convivência para a população de rua, com a visão humanitária de recomeçar, devolvendo uma grande parte da dignidade que esse povo perdeu.
Coordenado pelo PNBE, o centro de convivência do projeto Minha Rua, Minha Casa é o primeiro de uma série de 30 que atenderão, em média, 350 pessoas, possibilitando atingir os 10 mil moradores.
Ali, o morador de rua estará convivendo sob um projeto adequadíssimo do arquiteto Roberto Loeb. Ele terá um setor chamado de Cofre-Documento, que, depois de resgatar os documentos dos 350 frequentadores, tratará de guardar os originais, fornecendo cópias autenticadas para evitar roubos.
Os Armários-Casa serão o local onde eles guardarão seus últimos pertences, como, por exemplo, a foto da família, um relógio, entre outras lembranças. A chave será depositada na portaria, como num hotel.
O documento de identificação do centro de convivência será outro instrumento que dará referência ao possuidor, assim como o telefone comunitário, a caixa de correio e o centro de oferta de trabalho.
Uma capela, quadra de esporte, banheiros, lavanderia, barbearia, cabeleireiro, loja de roupas usadas ou novas doadas, além de uma farmácia de primeiros socorros, estarão à disposição.
O ponto mais importante nesses locais serão as oficinas abrigadas de trabalho, onde essa população poderá trabalhar para pagar as duas refeições diárias, pela manhã e à noite.
As obras do primeiro local já estão sendo executadas a todo vapor e deverão ser entregues em dezembro deste ano, para servir de modelo e experiência.
A mobilização em torno dessa iniciativa é a maior prova de que este país tem que dar certo, pois a sociedade, quando organizada, pode tudo. E tudo será feito para que aqueles que dilapidaram as nossas instituições nunca mais possam pôr as mãos no patrimônio do povo, obrigando governos sérios a se tornar impotentes diante da miséria em que se encontra o país.
Esse "pato" social vai ser pago com a indignação de todos os brasileiros. Disso ninguém tem mais dúvida.

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