São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
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Dualidade moral

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Em tese, o fim da estabilidade do funcionalismo público é respeitável e merece consideração. O que não merece respeito nem consideração é a proposta do atual governo de reformar a Constituição com efeito retroativo, ou seja, tripudiando sobre o direito adquirido.
Semana passada, um telejornal mostrou trechos do processo no qual o sr. Bresser Pereira descolou enorme indenização trabalhista de um supermercado. Na petição inicial, assinada por seu advogado Alfredo Flandoli, a base da argumentação era, justamente, esse direito adquirido que ele agora quer abolir para os outros, desde que salvou o seu.
Tanto o fim da estabilidade como a reeleição de prefeitos, governadores e presidente da República são medidas que podem melhorar o sistema de poder, uma vez obedecido o elementar preceito da decência pública e privada.
A partir de tal data, aqueles que ingressarem nos quadros do funcionalismo saberão que a estabilidade já era. Quanto à reeleição dos atuais mandatários, todos eles tomaram posse com data certa para sair do poder. Aqueles que aceitarem a prorrogação "ad hoc" poderão se sentir dentro da lei, mas estarão fora daquilo que o patriarca José Bonifácio chamou de razão e moral.
A declaração de FHC sobre as demissões é de revoltante cinismo. Prometer que evitará o arbítrio e as motivações partidárias equivale a garantir que a atual equipe no poder é feita de anjos, arcanjos e superanjos.
Quem não tiver pistolão, quem pertencer a partidos que incomodam o poder fatalmente será demitido, independente da produtividade ou eficiência. Para evitar esse pega-pra-capar indecente, que abastece o governo de cargos no funcionalismo, criou-se a estabilidade. Evidente que há abusos, há prefeituras e Estados que gastam mais de 80% com a folha de pagamento. Mas a pletora tem origem no próprio poder, que atavicamente se utiliza dos cargos públicos para saldar compromissos familiares e eleitorais.
Voltando ao direito adquirido: o sr. Bresser não teve pejo em invocá-lo em causa própria. A dualidade moral é um retrato que define não apenas o ministro, mas o governo.

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