São Paulo, quinta-feira, 19 de outubro de 1995
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Você pode dizer o que quiser em sua lápide

DAVID DREW ZINGG
EM SÃO PAULO

A morte, como todos nós sabemos, é um assunto divertido. Na semana passada, antes de sermos tão rudemente interrompidos, estávamos falando de obituários ou de tênis que explodem -não me lembro bem de qual.
Em todo caso, um leitor vivo escreveu para dizer como estava espantado pelo fato de eu aparentemente não saber quem realmente escreveu o obituário criticando o falecido presidente do gigantesco conglomerado Time-Warner.
É uma queixa interessante, já que o que a coluna procurava mostrar era exatamente que todo mundo sabe quem escreveu o poema escarnecedor. Foi o eminente crítico de arte da revista "Time" que o escreveu. Embora ele deva conhecer o ditado dos advogados, de que os mortos não processam ninguém, Robert Hughes provavelmente aderiu ao silêncio para proteger seu emprego.
Como aprendemos na semana passada, a leitura dos obituários pode ser fascinante. Se o sujeito tem que morrer, o mínimo que vai querer de uma vida legal é um bom obituário.
Uma boa lápide já é outro papo. Em primeiro lugar, uma lápide não é um obituário editorial -na realidade, ela pode ser enquadrada na categoria dos anúncios publicitários. Você paga pela lápide, portanto pode dizer nela o que bem entender. Minha lápide predileta é uma que fica no cemitério de Key West, na Flórida. Ela diz, em tom convincente: "Eu lhe falei que não estava me sentindo bem!".
É fácil ser condescendente com os mortos quando se escreve obituários. O que precisamos, além de um bom charuto, é de escritores de obituários que não tenham medo de ser antipáticos.
Precisamos afiar nossas mentes e as afinar para produzir avaliações justas, descritivas e corretamente objetivas do morto. Se soarem cruéis, que isso seja o alto preço a pagar pelo aprendizado.
Permita que eu lhe mostre, Joãozinho, até que ponto a crítica pode chegar. O que transcrevo a seguir não são obituários, mas opiniões de uma personalidade histórica sobre outra. Trata-se de guerra verbal em nível nuclear. Esses comentários poderiam ser matéria-prima de ótimos obituários.
Uma velha amiga nova-iorquina, Gloria Steinem, não apreciava muito o livro choroso de Jacqueline Susann, "The Valley of the Dolls". Foi até sua máquina de escrever e datilografou: "É um livro para o leitor que já deixou para trás as histórias em quadrinhos mas ainda não se sente pronto para os editoriais do 'Daily News' ".
Outro amigo meu nunca se contém quando tem alguma bomba para detonar, especialmente quando ela se faz mais necessária. Gore Vidal possui uma língua viperina que, na presença de meio motivo apenas, já se enrola para tornar-se um estilingue mortífero.
Gore Vidal, falando sobre o escritor russo Alexander Solzhenitsyn: "Ele é um mau escritor e um tolo. Essa combinação costuma garantir grande popularidade nos EUA". Vidal falando sobre um célebre escritor da Gringolândia: "Truman Capote fez da mentira uma arte. Uma arte menor".
Tomemos o caso de um dos escritores favoritos da srta. R, George Bernard Shaw. Para cada leitor que o velho GBS fisgava, ele fazia dois inimigos mortais.
H.L. Mencken, dono de uma das línguas mais viperinas da Gringolândia, disse, referindo-se a Shaw: "O trabalho de sua vida consiste em anunciar o óbvio em termos do escandaloso".
A bíblia dos sicofantas soviéticos, o "Pravda", chamou esse irlandês criador de problemas de "um burguês ressecado, um chauvinista fossilizado".
Talvez o melhor ataque tenha vindo de um cavalheiro chamado Henry Arthur Jones, que escolheu suas palavras com precisão: "GBS -um homúnculo que é uma aberração, germinado fora do âmbito da procriação legítima".
Para aqueles que estão em seus escritórios, sem seu Aurélio à mão, vou traduzir o comentário para a linguagem dos anos 90: "GBS é uma estranha imitação ilegítima de ser humano". Mesmo Shaw teria apreciado a descrição.
Oscar Wilde veio fechar a última saída pela qual Shaw poderia ter escapado da fogueira. Ele desferiu o último golpe com delicadeza, dizendo que "Shaw ainda não se tornou eminente o suficiente para ter inimigos, mas nenhum de seus amigos gosta dele".
Reflita, Joãozinho, sobre a vida ingrata dos homens que projetam os erros permanentes do lápis aos quais damos o nome de edifícios.
Seja qual for a visão que o arquiteto tem de um mundo melhor, ela se transforma em sua declaração pública. A única coisa capaz de apagar o lápis do arquiteto é a misericordiosa escavadeira do demolidor. Mas não faltam críticos tentando dar conta do recado com meras palavras. Aqui vão alguns dos golpes verbais a edifícios que mais aprecio:
Torre Eiffel, Paris - O Empire State depois dos impostos.
Museu Guggenheim, Nova York - Uma guerra entre arquitetura e pintura, da qual ambas saíram gravemente feridas.
Aeroporto de Heathrow, Londres - Só fui entender o que significa o terrível termo "doença terminal" quando vi o aeroporto com meus próprios olhos.
Edifício da Prefeitura de Vancouver, Canadá - Declaro esta coisa inaugurada, seja lá o que ela for (Príncipe Philip).
Mas vamos voltar às amargas homenagens aos mortos, tá bom?
Uma das cabeças que mais aprecio na Gringolândia é a de Michael Kinsley, jornalista, editor e autor de tiradas irônicas variadas. Ele é um dos apresentadores do talk show político "Crossfire" e rumina sobre o ônus pesado daqueles que escrevem a poesia das manchetes dos obituários.
Cita, como exemplo, "David Gorenstein, que mapeou os campos mais densos da matemática, morre aos 69" e se pergunta se Gorenstein não teria topado mapear os segundos mais densos campos da matemática em troca de alguns anos a mais.
Ai de nós que passamos nossa vida na insignificância. Você preferiria ser esquecido nas páginas de obituários ou sair como "Jackson Weaver, 72, voz de personagens de desenho animado"?
Na Gringolândia, o termômetro do ranking social é a seção social do "The New York Times". Se seu nascimento tiver sido observado pela Dama Cinzenta da rua 43, você terá começado com vantagem na corrida da vida.
A objetividade amena de um obituário no "Times" é fácil. O que queremos evitar é a maledicência artística, tão ofensiva que até mesmo um obituário se sente na obrigação de censurá-la.
Em 1967, John Coltrane se dirigiu ao Grande Festival de Jazz do Céu. Pediram ao grande crítico de jazz Philip Larkin que escrevesse seu obituário para o "London Daily Telegraph". O jornal havia sido pioneiro na publicação de obituários críticos, mas recusou-se a publicar um deles.
Larkin alegava, com sinceridade, que Coltrane havia sido um dos conspiradores que tramaram a destruição do jazz "puro". Ele concluiu seu obituário dizendo: "Lamento a morte de Coltrane, como lamento a de qualquer homem, mas não posso ocultar o fato de que ela deixa no jazz um silêncio imenso, abençoado".
Talvez a melhor maneira de resumir o assunto sobre como escrever sobre a Viagem Final ao Céu seja citar o comediante Red Buttons, quando viu a multidão no enterro de Harry Cohn, um produtor de cinema de Hollywood:
"Isso só vem comprovar que quando você dá ao público aquilo que ele quer, o público vem assistir".

Tradução de Clara Allain

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