São Paulo, sábado, 21 de outubro de 1995
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Desenvolvimento e promoção humana

RUBENS RICUPERO

Nas últimas semanas, tive de ir duas vezes a Nova York, em razão de meu novo trabalho com as Nações Unidas. Em ambas as ocasiões, o "New York Times" dava grande destaque aos contínuos problemas brasileiros em direitos humanos e em meio ambiente.
Na primeira vez, era um artigo devastador de quase página inteira, com chamada de primeira página, sobre a chacina de Rondônia, com detalhes de um barbarismo digno dos jornais populares especializados em atrocidades e crimes.
Quando voltei, na semana passada, deparei-me com uma matéria enorme sobre as queimadas na Amazônia e as dúvidas sobre se teria de fato ocorrido uma redução no ritmo de destruição da floresta.
Embora minha novas atividades não estejam diretamente ligadas ao Brasil, boa parte das pessoas que encontrei, sabendo que eu era brasileiro, logo me diziam que haviam lido os artigos.
O que havia de desanimador, quase deprimente, nos artigos é que eles reconheciam a mudança para melhor no discurso oficial, a abertura na política do governo, as boas intenções... O que não mudara muito, porém, era a realidade, que continuava, com brutal regularidade, a desafiar os melhores propósitos.
Desde então venho me perguntando o que explicará, afinal, essa impermeabilidade de nossa sociedade a padrões mais humanos de convivência, essa lentidão ou resistência mesmo em relação à mudança social.
Tempos atrás, se buscaria talvez a chave na dualidade dos dois Brasis de Jacques Lambert, o país rural, arcaico e até bárbaro, e o moderno, industrializado, das grandes cidades. Mas quando a barbárie tem como cenário a Candelária, o Carandiru ou o Vidigal, vê-se logo que a linha de fratura entre os dois mundos não é horizontal, separando áreas geográficas justapostas.
Trata-se, mais exatamente, de uma divisão vertical que corta a sociedade na cidade e no campo, deixando no andar de cima os aquinhoados e relegando aos porões a imensa massa dos pobres. É um pouco como no clássico "Metrópolis", no qual a raça requintada e consumista da superfície era sustentada por um gigantesco exército de escravos labutando nos subterrâneos.
Pode-se, acaso, falar em desenvolvimento em tais condições? É possível manter indefinidamente essa assincronia entre crescimento material e elevação humana, sem que o atraso da segunda acabe por comprometer seriamente a continuidade do primeiro?
As violências envolvendo camponeses e indígenas, no Brasil ou no México, não serão sintomas de que, a partir de um certo ponto, o acirramento das desigualdades põe em questão a própria possibilidade de desenvolvimento?
A diferença da experiência asiática em relação à latino-americana é que na Ásia o crescimento se fez passo a passo, com a contínua melhoria do salário real, da distribuição da renda e do acesso à educação. Não será por isso que o desenvolvimento asiático se vem revelando muito mais sólido e duradouro do que os nossos espasmos de crescimento, seguidos de longas e penosas contrações?
Se isso for verdade, duas conclusões são inevitáveis.
A primeira é que a distribuição de renda e a promoção dos direitos humanos são ingredientes indispensáveis para fazer crescer a massa do produto social, e não cobertura de açúcar para adoçar o bolo quando ele estiver já crescido.
A segunda é que, tal como na Ásia, não se deve deixar essa tarefa ao mercado, por efeito de uma espécie de transbordamento do que sobrar do enchimento até a borda da taça de champanhe. Cabe ao Estado, nesse caso, tomar a iniciativa das reformas.
Nada melhor, nesse sentido, do que buscarmos inspiração no exemplo da sociedade norte-americana. Nenhuma outra é mais escrupulosa em assegurar a mais ampla liberdade do mercado em matéria econômica. Ao mesmo tempo, porém, não há sociedade mais disposta a recorrer a métodos drásticos de ativismo governamental a fim de promover a mudança social e os direitos humanos.
Quantos brasileiros, por exemplo, aceitariam os mecanismos de cotas e de intervenção estatal para melhorar a posição social dos negros e de outras minorias, como se faz nos Estados Unidos?
Será porque a nossa situação é de tal modo diferente? Ou será porque, ao contrário dos americanos, somos favoráveis ao intervencionismo do governo em matéria econômica, mas preferimos a passividade, a não-intervenção, no domínio social, esperando que, por milagre, as coisas se arranjem por si mesmas?
É justamente por crer que nossas preferências devem ser viradas de cabeça para baixo que vejo com satisfação o maior ativismo do governo federal em matéria de direitos humanos e sociais.
Não obstante todos os problemas, o poder e o prestígio da Presidência da República são entre nós suficientemente fortes para catalisar, finalmente, uma reação vitoriosa contra a passividade e a inércia que caracterizaram a maior parte da nossa história.

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