São Paulo, sábado, 21 de outubro de 1995
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Polícia e cartórios impedem reforma agrária

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

São Paulo deve ao Brasil a reforma agrária. A reforma agrária padrão, que oriente todas as demais.
Isso exatamente por ser o Estado mais próspero, mais adiantado, mais organizado da Federação. "Noblesse oblige", como se dizia no tempo em que o francês era mais usado entre nós que o inglês: a nobreza dá posição mas cria obrigações.
Numa carreira de repórter que já vai ficando longuíssima, fui enviado por vários jornais a várias zonas do Brasil que pareciam na iminência de dar início a um processo definitivo de reforma agrária. Nenhum aconteceu.
Em 1984 eu estava cobrindo uma reforma agrária sabem onde? No Pontal do Paranapanema. A Cesp (Companhia Energética do Estado de São Paulo) se refazia do governo Paulo Maluf, que inundara terras ocupadas pelos lavradores. "Ué, e eles não sabem nadar?" teria perguntado o governador Maluf, à época da inundação.
Essas terras inundadas e mais as destinadas a assentar os desabrigados, aliás, estavam todas em juízo, porque qualquer gleba do Brasil tem dono.
Desde a Lei de Terras do Segundo Reinado, datada de 1850, não há, neste Brasil enorme, lavoura distraída, de ingênua subsistência, que não tenha sido transformada em propriedade de quem jamais pegou numa enxada: os brasileiros que sabem ler e escrever não perdem tempo em encontrar rábula, cartório e papel velho para inventarem um termo de propriedade.
Quando a massa dos analfabetos que realmente lavra a terra abre os olhos, já tem à porta do sítio em que trabalha um oficial da Justiça e outro da Polícia.
A maioria das reportagens que fiz sobre reforma agrária foi pelo Nordeste do Brasil afora, na Paraíba ao tempo em que o governador era José Américo de Almeida, no Pernambuco governado por Miguel Arraes antes do golpe militar de 1964. Mas não pretendo evocar aqui as áreas assoladas pela seca e pela pobreza maior que consome o Brasil.
O tema dos dias que correm, tema que envolve igualmente minhas lembranças, é o do Pontal do Paranapanema, na zona rica do país, nos limites de São Paulo com o Paraná e o Mato Grosso do Sul.
Foram outros os líderes dos sem-terra que lá conheci e entrevistei em 1984. Mas relendo agora o que então me dizia, por exemplo, o sem-terra Moisés Simeão, tenho a impressão de que o tempo não passou.
As declarações que leio hoje de José Rainha Jr. são o eco do que pregava Simeão. Diz agora José Rainha, falando no Pontal: "Esta região é um enclave de latifúndios improdutivos no Estado mais rico e mais organizado do Brasil, e isso precisa acabar". Rainha, como queria Simeão, deseja conquistar 600 mil hectares de terras improdutivas e nelas alojar milhares de famílias.
São Paulo é, afinal, o maior centro industrial da América Latina, seu produto bruto ultrapassa fácil o da Argentina. Como explicar, então, que o problema da reforma agrária não tenha progredido um palmo numa zona como a do Paranapanema, dos tempos de Moisés Simeão aos tempos de José Rainha Jr., dos dias de Franco Montoro aos de Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso?
E tem mais. O secretário de Planejamento do governador Montoro era José Serra, que pode ser acusado de tudo menos de ser a Carolina da balada de Chico Buarque, que vivia na janela, vendo o tempo passar.
Defendendo-se, naquele tempo, dos ataques que sofria dos falsos proprietários-grileiros que queriam simplesmente exterminar os sem-terra, dizia o governador Franco Montoro, por intermédio da Cesp: "Ao quebrar o imobilismo de 40 anos em que governos anteriores mantiveram a grilagem centenária e predatória das terras do Pontal do Paranapanema, o atual governo provocou uma onda de críticas por parte de alguns latifundiários".
Os mesmos latifundiários-grileiros, ou seus herdeiros, mantêm hoje a campanha de então e investem tanto contra o governo como contra os liderados de José Rainha Jr. Nunca vai mudar nada no Pontal do Paranapanema?
Acho que Betinho tem razão de sobra quando diz que 32 milhões de pessoas que estão neste momento passando fome não podem esperar que resolvamos os problemas fundiários do Brasil para começar a alimentá-los.
Mas quantos outros 32 milhões teremos que alimentar se não começarmos, desde já, a dar terra aos sem-terra do Pontal do Paranapanema?
O Brasil não pode, simplesmente, continuar a ser o campeão da concentração da propriedade da terra enquanto suas cidades, a começar por São Paulo e Rio de Janeiro, se transformam em asilos de gente jovem e sem destino.
No Congresso Nacional a força corporativa mais forte é a bancada ruralista. Não se dilui pelos partidos que formam o Legislativo. Trata-se de um alegre grupo de "cowboys".
Com o intuito de pôr alguma ordem nas minhas reportagens sobre reforma agrária, pedi ao Banco de Dados da Folha um dossiê sobre o drama dos sem-terra em geral. Veio ótimo, como era natural e combinamos, limitado aos tempos recentes.
Começa pelas tentativas na época do governo Sarney. Ora, minha primeira reportagem sobre o assunto data de 1951, quando o então presidente Getúlio Vargas resolveu que ia dar terra aos sem ela e criou a Comissão Nacional de Política Agrária, apoiada no saber econômico e sociológico de Rômulo de Almeida e no saber jurídico de Hermes Lima.
Se o alentado dossiê que recebi do Banco de Dados partisse de 1951 bateria o recorde estabelecido pelo Livro Guinness para a maior publicação que um jornal já fez, a saber, a edição dominical do "New York Times" de 14 de setembro de 1987: um jornal de 1.612 páginas, pesando cerca de seis quilos.

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