São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O hexágono de ferro

ROBERTO CAMPOS

"A sociedade, em qualquer estado, é uma bênção, enquanto o governo, mesmo em seu melhor estado, não passa de um mal necessário; no seu pior estado, um mal intolerável.
(Thomas Paine, no panfleto "Common Sense", de 1776)

A modernização do Brasil se fulcra em duas medidas: a reengenharia de empresa e a reformatação do Estado. O setor privado avançou bastante no ajuste. Um subproduto desejável foi o salto de produtividade; um indesejável foi o surgimento de desemprego estrutural, que só poderá ser atenuado por retreinamento de mão-de-obra e elevação da poupança para investimentos.
A reformatação do Estado exige reformas externas e internas. As externas são a abolição dos monopólios, a privatização de estatais, a concessão de serviços públicos ao setor privado e a terceirização. As internas são a reforma administrativa, a previdenciária e a fiscal. Nessa sequência, pois só se pode reformular o sistema fiscal depois de conhecido o tamanho do Estado a financiar. Todas essas reformas estão atrasadas, coisa lamentável porém compreensível, pois exigem mudanças culturais e demolições de mitos.
Os bônus do Plano Real fluíram para os consumidores; os ônus do reajuste têm recaído, principalmente, sobre o setor produtivo privado. Isso em virtude dos dois principais instrumentos usados para a estabilização -a taxa de câmbio e a taxa de juros- e dos dois choques de oferta que facilitaram o deslanche do Real: a safra agrícola (que deprimiu os preços) e a abertura para importações (que aumentou a competição).
A fatura da taxa de câmbio sobrevalorizada foi paga pelos exportadores; a das taxas de juros, pelos produtores. O retardatário no ajuste foi o governo, sobretudo em nível estadual e municipal. Foram criados desde 1988 mil municípios, o que significa 15 mil novos cargos públicos, entre prefeitos, vice-prefeitos e secretários municipais, sem contar o pessoal burocrático nessas mil máquinas de gastos, sugando recursos do Fundo de Participação.
O primeiro grande teste de capacidade do Estado para se reformatar (e, assim, dar sustentabilidade a longo prazo ao Plano Real) é a reforma administrativa, ora em exame no Congresso.
A Constituição de 1988 criou um hexágono de ferro, que dificulta a modernização administrativa. Os lados do férreo hexágono são: a estabilidade do funcionalismo, a irredutibilidade dos vencimentos, a isonomia de remunerações, a autonomia dos Poderes para fixação de seus vencimentos, o direito quase irrestrito à greve nos serviços públicos e o regime único de servidores.
Tratam-se de atributos típicos do Estado patrimonial e paternalista, inexistentes nos modelos das constituições clássicas, anteriores à Constituição alemã de 1919. O modelo de Weimar, freneticamente imitado e ampliado nas constituições latino-americanas, agregou aos direitos fundamentais clássicos do cidadão os chamados "direitos econômicos e sociais".
Há uma fundamental diferença. Aqueles são "universalizáveis" e constituem garantias não-onerosas: direito à vida, à liberdade, à locomoção, ao voto, ao recurso judicial. Os direitos econômicos e sociais -como salários, previdência e estabilidade no emprego- são setoriais e específicos. E, sendo garantias onerosas, por isso mesmo nunca podem ser cláusulas pétreas. Dependem da sanção da vítima (o contribuinte) e não são imunes a mudanças drásticas da conjuntura econômica e social.
O inchaço do Estado, a corrupção e a ineficiência não são o resultado direto das más intenções de legisladores. São consequências, às vezes não imediatamente visíveis, de concepções equivocadas ou distorcidas pela ideologia e de interesses que se infiltram sorrateiramente no aparelho público.
O nacionalismo, força essencial na fase de "nation building", da construção da nação, torna-se retrógrado quando feito gabarito de um Estado moderno em industrialização acelerada. Inspirou a criação de empresas estatais e reservas de mercado, num processo que se alastrou e levou o país para a estagnação dos anos 80-93.
O sindicalismo, força reivindicatória importante durante a expansão industrial capitalista, foi, no Brasil, copiado do modelo fascista de monopólio corporativo para servir aos fins políticos de Getúlio Vargas. Apesar de algumas lideranças novas que apareceriam a partir da década de 70, tornou-se um aparelho dominado por empregados do setor público, obstaculizando a modernização das relações de trabalho.
Na Constituinte de 1988, a lógica econômica entrou em férias. Foram dominantes o voluntarismo político e o juspositivismo.
O voluntarismo político desconsiderou constrangimentos econômicos, confundindo o desejável com o possível. Os juspositivistas acreditavam na capacidade das leis para criar uma nova realidade, em vez de apenas sancionar costumes e referenciar condutas. Foi um ensaio de "realidade virtual", antes que os computadores viabilizassem essa rotina. Legislamos para um país ideal, sem precisarmos quem pagaria a conta. Foi o canto do cisne do nacional-populismo.
O projeto de reforma administrativa contém pontos válidos: (a) redefine a "estabilidade" como sendo uma conveniência do Estado para garantir continuidade administrativa nas funções estratégicas e não um "direito individual" do funcionário; (b) evita que as demissões por excesso de quadros se transformem em vingança política, ao se determinar a extinção dos cargos; (c) coíbe imaginosas modalidades de ajuste (sob o pretexto de independência dos Poderes) ao fixar como teto a remuneração presidencial e ao exigir lei específica, sujeita ao veto do Executivo (guardião da caixa); (d) faculta a diferenciação de regimes de serviço, refletindo especificidades de administração direta, indireta e fundacional; (e) elimina a referência à isonomia dos vencimentos, que deflagra uma cadeia de demandas de equiparação.
Inútil dizer que a atual anarquia administrativa resulta de frouxidão política e não do texto constitucional. O fato é que este contém imprecisões que abriram espaços para contenciosos judiciais e uma perversa jurisprudência sancionadora de vantagens em cascata. Os próprios magistrados se arrogaram privilégios abusivos, interpretando elasticamente a Lei Magna.
Estabilidade é um nome simpático que se dá na Constituição a uma discriminação entre duas categorias de cidadãos: uma minoria do setor público, desobrigada de demonstração contínua de eficiência, e uma vasta maioria no setor privado, exposta aos riscos do mercado. Transformar essa discriminação em cláusula pétrea é um exagero paternalista.
A verdade é que a Constituição é contraditória. Se mantido o hexágono de ferro, é incumprível o teto de 65% da receita corrente para despesas de pessoal (art. 38 das Disposições Transitórias).
Abolir a estabilidade só daqui em diante é evitar a falência futura de Estados e municípios pelo estranho método de garantir sua falência no presente.

Texto Anterior: Vergonha
Próximo Texto: A aliança dos modernos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.