São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As transformações do jornalismo

MARCELO LEITE

O 2º Fórum Folha de Jornalismo e Mídia, que teve lugar quarta e quinta-feira passadas, abordou algumas das principais preocupações de jornalistas no Brasil e no mundo. Da luta pela sobrevivência de jornais socialistas, sem Muro de Berlim, ao furacão dos fascículos, muito de interessante se discutiu. Esta coluna pretende destacar o que houve de mais notável.
Antes, porém, um parêntese de explicação e justificativa. Tradicionalmente coordenado pelo ombudsman, nesta sua segunda edição o evento bienal coincidiu com a renovação do primeiro mandato e não com o término do segundo -como no caso de Mario Vitor Santos, na organização do 1º Fórum (1993), e de Caio Túlio Costa, com o 1º Seminário Internacional de Ombudsmen (1991).
Tornou-se inevitável suspender o atendimento diário de leitores, assim como a crítica interna da edição, igualmente diária. São coisas que evito ao máximo fazer, pois essas atividades estão entre as principais do ombudsman. Aproveito a oportunidade para avisar que saio para uma semana de descanso e que, portanto, o atendimento só será retomado dia 30.
De volta ao 2º Fórum, pela ordem cronológica dos três primeiros debates (os outros quatro ficam para a semana). Como se verá, o denominador comum entre os temas à primeira vista díspares são as pressões transformadoras sobre a prática jornalística.

Queda livre
A primeira mesa de quarta-feira versou sobre "Imprensa numa Sociedade Pós-Comunista". O palestrante foi Reiner Oschmann, editor-chefe do jornal alemão "Neues Deutschland" (Nova Alemanha), durante décadas órgão oficial do Partido Comunista da antiga Alemanha Oriental.
Depois de novembro de 1989, quando a República Democrática Alemã começou a ruir e a ser fagocitada pela poderosa e rica irmã República Federal da Alemanha, o jornal foi devastado. De uma tiragem de 1,1 milhão de exemplares, despencou para 80 mil, hoje, mas sobrevive. A redação foi reduzida de mais de 200 jornalistas para 55, que fazem também o trabalho de secretaria e telefonia.
Oschmann fez um relato bem dramático do vendaval capitalista que assolou o jornal sob sua direção e o exercício da profissão por outros colegas, fora do "Neues Deutschland". Disse que muitos deles já estão concluindo que a tão ansiada liberdade de expressão, inexistente sob o tacão de Erich Honecker, seria pelo menos relativa na nova ordem, pois em lugar do Partido estaria agora o "dinheiro grosso".
Embora não possa julgar a experiência de vida dessas pessoas, tendo a discordar de sua avaliação. Tenho minha própria experiência como jornalista formado e nutrido num ambiente capitalista e livre, e ela ensinou-me que a liberdade de expressão é muito mais um bem da sociedade que de indivíduos, embora sejam estes a exercê-la na prática.
Liberdade de expressão não é poder escrever o que se bem entende, mas aquilo que se pretende necessário e útil para a sociedade.E, até onde sei, não é de boas intenções socialistas e de dúvidas sobre o fantástico empreendimento da unificação que os alemães querem ouvir falar -por mais justas que sejam algumas das críticas formuladas por antigos comunistas.

Primos pobres
Preocupações também muito justas foram externadas por Ricardo Kirschbaum, secretário de Redação do jornal argentino "Clarín". Seu tema foi o "O Mercosul na Imprensa e na Mídia". Ele chamou a atenção para o fato de que, a confiar na ótica dos jornalistas, esse protomercado comum surge como um fato apenas econômico.
Por certo é bem mais do que isso, ou um dia vai ser. Há toda uma dimensão cultural nessa difícil aproximação entre Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, que vem sendo relegada a um plano inferior.
A questão das línguas é o menor dos problemas. Como são só duas e um tanto semelhantes, a saída para projetos editoriais conjuntos -como a revista especial "Mercosul" editada pela Folha e pelo "Clarín"- parece ser a de edições bilíngues ou com versões nos dois idiomas.
Bem mais difícil de abordar e resolver parece ser a preponderância de Brasil e Argentina nessa aproximação. No mais das vezes, quando se fala em Mercosul se pensa é nesses dois países, como se Uruguai e Paraguai não existissem. Cabe ao jornalismo refletir, questionar e interpretar esse estado de coisas, é a conclusão a tirar.

Picaretas virtuais
A terceira mesa da quarta-feira foi uma das mais valiosas para jornalistas e estudantes, na minha avaliação. Foi proferida pelo norte-americano Bill Dedman, jovem diretor (34 anos) da agência de notícias Associated Press. Sua diretoria carrega um nome todo novidadoso para ouvidos brasileiros: Computer-Assisted Reporting, ou reportagem (investigação) auxiliada por computador.
Sua palestra foi muito importante porque mostrou que o casamento computador-informação não é só "glamour" internético e outras pirotecnias, mas ferramenta nova para um trabalho tão velho quanto a profissão: dar duro para garimpar informações. Neste caso, remoer massas de dados e registros -de multas de trânsito a empréstimos bancários, como nos exemplos que deu- para detectar padrões e tendências, como discriminação racial.
Foi o caso do próprio Dedman, que recebeu um prêmio Pulitzer por uma série de reportagens sobre discriminação na concessão de empréstimos, sugestivamente intitulada "A Cor do Dinheiro". O Pulitzer é o mais cobiçado galardão do jornalismo norte-americano, que teria como correspondente no Brasil -guardadas as proporções- do prêmio Esso.

Pestanas X sapatos
Para terminar esta primeira parte do relato sobre o 2º Fórum Folha, permito-me uma consideração um tanto pessoal sobre Dedman: o maior mérito de sua apresentação foi deixar ainda mais evidente, para quem não se convenceu do contrário, que jornalismo não é mais um ofício de literatos, boêmios e talentos natos. Tornou-se uma profissão como qualquer outra, na qual só se avança com tecnologia, criatividade, espírito crítico e trabalho duro.
A única diferença é que, de ora em diante, vai ser preciso gastar muito mais as pontas dos dedos e as pestanas do que as solas dos sapatos.

Texto Anterior: OPINIÃO DA FOLHA
Próximo Texto: NA PONTA DA LÍNGUA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.