São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Novas igrejas trocam a ética pela mágica

RICARDO BONALUME NETO; FERNANDO DE BARROS E SILVA

Folha - Intelectuais tendem a achar, por sua formação, que essas pessoas estão sendo ludibriadas. Mas não estará a igreja melhorando a vida delas?
Pierucci - Santo Agostinho tem uma idéia muito interessante. Eu sou tão pecador, mas tão pecador, que, se Deus me salva, é porque ele me ama.
Folha - É o velho clichê do papel opiáceo da religião, de alívio.
Pierucci - Ela cria condições de autoconfiança que mudam a pessoa, que reencontra uma dignidade. Talvez suas pulsões serão mais reprimidas. Religião é ópio e é repressão. Reprimem-se forças, desejos perigosos. É um controle que se passa a ter sobre si mesmo. Por que eles criticam tanto o alcoolismo? Porque ele tira da consciência, do autocontrole.
Folha - A Igreja Católica morre de medo da expansão dos pentecostais, e a impressão que se tem é que o céu é o limite.
Pierucci - Morre mesmo. Mas não é bem assim. O preço para se ter um crescimento total é se estruturar de forma que vai haver uma clientela passiva. Não se pode transformar todas as donas de casa em militantes protestantes.
Muito do discurso mobilizador advém do fato de se considerarem minoritários. É aquela famosa idéia sociológica das minorias ativas: enquanto você é minoria, você tem gás. Quando se vira maioria, essa energia desaparece, você se acomoda, como os católicos de tradição, que não são militantes.
Para crescer, é preciso também se submeter a uma pluralização política interna. Há os católicos de direita, de esquerda, de extrema-direita, de extrema-esquerda. É impossível imaginar que os neopentecostais, que são super-conservadores, cresçam a ponto de abarcar toda a população.
Por outro lado, como o historiador Paul Veyne mostrou em um artigo na Folha, não se sabe porque o Império Romano virou cristão. De repente, por uma síndrome aleatória de difusão, pode acontecer que eles se expandam.
Folha - Mas eles não são um espectro interno variado, formado de gente que chuta e de gente que não chuta santa?
Pierucci - Se uma pluralização acontecer, é porque houve uma mudança grande. Pastores protestantes de esquerda são muito minoritários.
Benedita da Silva é da Assembléia de Deus e é um bom exemplo. Ela é toda uma exceção -negra e senadora, evangélica pentecostal e de esquerda. É o emblema do que é uma minoria.
Folha - O episódio do chute pode prejudicar a Universal?
Pierucci - Essa Igreja Universal é tão moderna, que tudo que for para o sucesso dela vai ser valorizado. Aquilo que a colocar em um caminho ruim, vai ser descartado.
A cúpula acha que isso pode criar uma imagem ruim, de que não são eles os perseguidos, e sim os que perseguem. Pode ser bem ruim. E também cria-se o terreno para lembrar ao católico que ele é católico. Isso eles não previram. Católicos adormecidos acordaram. Isso pode ser um fator de conflito.
Folha - Por isso eles já decidiram exilar o bispo responsável.
Pierucci - Eles são muito ágeis, não há dúvida. É uma agilidade empresarial. Uma das bandeiras do neopentecostalismo, de Edir Macedo inclusive, é a de que não existe liberdade religiosa no Brasil. Temos que conquistar a liberdade religiosa. Esse episódio de agressão a uma imagem de Nossa Senhora Aparecida dentro do templo é reivindicado como um direito de liberdade religiosa.
Se você acha Nossa Senhora o demônio, porque não poderia agredi-la? Em um país com liberdade religiosa, você deveria poder. Se você é muçulmano e quer matar um bode na sua banheira, ou se eu quero expulsar o demônio da minha casa e quebro a imagem da Nossa Senhora Aparecida -isso é um direito meu.
Folha - Mas a imagem foi chutada em um programa de televisão. Nesse caso, atinge todos os outros.
Pierucci - Por isso essa confusão toda. Os outros não obrigados a gostar.
Folha - Por que o nome neopentecostalismo?
Pierucci - Ainda não está sacramentado como neo. Eles são muito diferentes, deixaram de transformar os pentecostais em pessoas estranhas.
Passando na rua antigamente, você podia dizer: "Aquela mulher é crente, aquele cara é crente", porque se vestiam como crentes. Hoje vai-se numa igreja neopentecostal e as mulheres estão de minissaia, usam batom, decote.
Deixaram de achar que o corpo é uma coisa que se tem que reprimir e esconder. Estão bem mais adaptados a uma sociedade de consumo que os antigos pentecostais.
Mas isso não é o mais importante. Isso significa que eles se dessectarizam, que eles não querem mais se sentir separados da sociedade. Querem se sentir integrados. Por isso a ênfase na questão da liberdade religiosa no Brasil, e que eles podem conseguir agora.
Sem querer, eles incitam os católicos a os perseguirem novamente, e fica aquela "self-fulfiling prophecy" (profecia que se auto-realiza): "eu não disse que não havia liberdade?".
E neo, também, porque eles têm uma vontade muito positiva de sucesso nesta vida. As promessas da religião não estão jogadas para o outro mundo, estão voltadas para o tempo presente: "Você vai arranjar o emprego. Você quer uma Brasília amarela, você vai conseguir uma Brasília amarela. Basta que você confie totalmente em Deus. Você que tinha medo, amanhã você não tem mais medo. Não é preciso esperar o céu, é agora". Isso é muito contemporâneo.
Folha - No que isso difere da ética protestante clássica, segundo Max Weber?
Pierucci - Weber diz que o calvinismo não dizia: "Procure o dinheiro, vá atrás do dinheiro", e sim dizia: "Discipline-se, trabalhe".
Era uma ética dos primórdios do capitalismo, do capitalismo empreendedor, do pequeno empresário que tem que levantar cedo e dormir tarde. Se ele ficasse rico, isso seria um efeito não esperado. Não há nenhum texto de Calvino dizendo que o dinheiro é uma coisa boa. Ele vem como consequência da sua disciplina, do seu auto-controle.
Folha - Quando o sujeito pede o dízimo na Igreja Universal, ele diz que é o demônio que impede que a mão do fiel entregue o dinheiro.
Pierucci - Ou seja, o antigo protestantismo analisado por Weber era ético mesmo. Tinha-se que mudar a conduta. Esse agora é mágico, ou seja, você dá todo o dinheiro que tem para Deus, o dinheiro da feira, do ônibus, porque amanhã o teu bolso estará cheio de dinheiro novamente.
Há uma vontade de manipular as forças divinas. Se você der dinheiro para Deus, Deus fica comprometido a te ajudar. É um desafio a Deus. Isso não é weberiano. Você se disciplina, mas não desafia Deus.
Folha - O ritual mudou? Algo muito associado aos neopentencostais são os cultos com gritos, como um exorcismo coletivo.
Pierucci - O pentecostalismo sempre foi um ramo do protestantismo muito emotivo, a experiência do Espírito Santo é um pouco a de sair de si, entrar em transe, em êxtase. É aquela coisa dos negros americanos, da música gospel. São técnicas. Com todos eles gritando ao mesmo tempo na igreja, cria-se uma condição racional para se passar a um estado irracional. Daí a grande força de penetração: ela não oferece apenas uma cerimônia que se assiste, ela oferece uma experiência pessoal, física.
Folha - Não é surpreendente que na África do Sul um pastor da Universal reuniu metade das pessoas que o papa reuniu?
Pierucci - Nesse sentido há uma mudança de dimensão do culto. Antes eram em pequenos templos. Agora são cinemas, grandes salões e estádios. E isso tem um efeito mediático de demonstração imediato: "Nós somos muitos". A partir desse momento, há o passo para a politização: "vamos eleger deputados". Antigamente os pentecostais tinham até um mandamento: "Não participarás".

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