São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Novas igrejas trocam a ética pela mágica

RICARDO BONALUME NETO; FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS A CAXAMBU

As igrejas neopentecostais, como a Universal do Reino de Deus, têm muito pouco em comum com o protestantismo tradicional, aquele analisado pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), em seu clássico livro "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de 1905.
Este último era ético, os neopentecostais são mágicos. Aquele dizia "trabalhe, discipline-se, acorde cedo". Agora, o que se promete é a felicidade para depois de amanhã, como se, dando dinheiro a Deus, o fiel o desafiasse a devolvê-lo em dobro logo a seguir.
A análise é de Antônio Flávio Pierucci, 49, professor do Departamento de Sociologia da USP e uma das maiores autoridades em estudos religiosos do país.
Pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) entre 71 e 88, Pierucci defendeu seu doutorado em 84. Mostrou que mais de 30% do clero católico apoiou o PT na eleição ao governo de São Paulo em 1982.
A entrevista a seguir foi concedida na última quinta-feira, durante a 19ª reunião anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), da qual Flávio é secretário-executivo, realizada até ontem em Caxambu, Minas Gerais.

Folha - Existe mesmo uma tolerância religiosa no Brasil, que teria sido quebrada com o episódio do chute em Nossa Senhora Aparecida pelo bispo da Igreja Universal?
Antônio Flávio Pierucci - O Weffort (Francisco Weffort, cientista político e ministro da Cultura) lançou recentemente a idéia de que nós somos socialmente excludentes e culturalmente includentes. Eu gosto dessa idéia. Nunca houve tolerância religiosa no Brasil. O catolicismo foi religião oficial desde a Colônia, religião de Estado e exclusivista. Era para se converter as pessoas a essa religião.
Esse é o dado de origem. Mas, ao mesmo tempo, é uma religião de Estado que é uma religião católica. E o catolicismo, embora teologicamente seja monoteísta, na prática é politeísta. Você tem Nossa Senhora, uma entidade que é feminina e que não chega a ser Deus, mas que é quase divina, e você tem todos os santos.
Isso abre uma possibilidade de acomodação com outras religiões, que é uma acomodação subalterna -subordina-se as outras religiões, e elas vão se encaixando. Portanto, é possível manter a lealdade a deuses familiares, deuses locais, e se ajustar a esse modelo.
Se há religiões monoteístas, elas são o protestantismo e o Islã. São duas religiões radicalmente monoteístas. Isso muda tudo, nessa relação entre catolicismo e protestantismo, hoje. É mais fácil imaginar que o catolicismo se adapte a uma mentalidade afro-brasileira do que o protestantismo, sobretudo o protestantismo de veia puritana.
Ambos são cristãos, mas católicos e umbandistas são politeístas na prática. Isso resulta numa estrutura diferente. Pesquisadores americanos ou ingleses de cultura protestante têm dificuldade em entender essa coisa do Brasil.
O catolicismo, como ele é politeísta, cria uma estrutura de acomodação. Continua hegemônico, mas não exclui, incorpora.
Folha - Mas a Igreja Católica tentou historicamente combater a umbanda e o candomblé.
Pierucci - Tentou, sim. Há a política oficial, que reprime, mas que é, ao mesmo tempo, uma repressão de integração. Não se quer que aquilo seja excluído.
Folha - Não foi o mesmo caso com o judaísmo.
Pierucci - Tem razão. O judaísmo também é radicalmente monoteísta. Junto com o Islã e o protestantismo, ele tem mais dificuldade de se adaptar do que o hinduísmo, o catolicismo, o xintoísmo, onde há uma pluralidade de deuses.
Folha - No Brasil, qual das religiões de origem africana tem maior penetração?
Pierucci - A umbanda. O candomblé é uma religião de iniciação -portanto, muito restrito. É muito difícil você ser membro do candomblé. Exige uma dedicação muito grande. Ele não está mais restrito a negros, já é uma religião universal, só que ainda tem uma estrutura muito grupal. Sendo mais exigente, seleciona pessoas.
A umbanda tem uma capacidade maior de atendimento de clientela. Pode-se receber um passe na umbanda e não se vai no candomblé receber um passe. O pai de santo do candomblé joga búzios para você, mas isso ocorre depois da cerimônia.
Folha - Por que as novas religiões são chamadas de neopentecostais? Como foi o histórico do ingresso do protestantismo no Brasil?
Pierucci - Há duas coisas no protestantismo. Uma são as as igrejas chamadas históricas, que chegam no Brasil por imigração, através de ingleses, alemães, huguenotes.
Outra é o protestantismo de missão, que chega com missionários da Suécia, dos Estados Unidos, da Alemanha. É outro tipo de protestantismo.
Folha - Eles formam então dissidências...
Pierucci - Não, eles já chegam com dissidências. Esse processo de cissiparidade é inerente ao protestantismo. Isso dá uma flexibilidade muito grande a ele.
Folha - Há uma relação de exclusão, como chamar o outro de herético, ou há alguma solidariedade?
Pierucci - Isso é outro movimento, ecumênico, de aproximação, depois da criação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, uma tentativa de fazer uma coisa conjunta, do tipo "somos todos protestantes".
Paralelamente, do lado do catolicismo, há um movimento de renovação, que começa com o Concílio Vaticano 2º, no final dos anos 50 e começo dos anos 60, com João 23, que é a idéia de fazer aproximarem-se católicos e protestantes, sob a alegação de que o mundo estaria ficando sem Deus, estaria ficando ateu. "Vamos unir as forças", eis a idéia.
Mas, sempre com essa dificuldade, o catolicismo mantém Nossa Senhora, mantém os santos, e os protestantes mantêm a idéia de que Deus é único.
Isso colabora para que, no Brasil, nossa geração tenha uma idéia de tolerância, porque aqui o movimento funcionou muito bem. O movimento ecumênico no Brasil pegou muito depressa, entre luteranos, metodistas, presbiterianos, católicos progressistas.
Houve um movimento de renovação teológica que aproximou e criou uma mentalidade nas cúpulas da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), da Conferência dos Evangélicos, de diálogo -ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro ficava cada vez mais laico.
Isso cria, apesar da hegemonia cultural da Igreja Católica e da sua capacidade de manter pressão sobre o sistema político, a idéia de que não é preciso brigar com os protestantes.
Folha - Há uma mudança agora? E os neopentecostais?
Pierucci - Antes disso, houve, nos anos 50, a cruzada nacional de evangelização, que foi o grande "boom" do pentecostalismo no Brasil. Houve a vinda de uma igreja muito dinâmica, a do Evangelho Quadrangular, que não construía templos, mas pregava em tendas na periferia, pegava as cidades do interior pelas beiradas.
Eles foram muito perseguidos. Os católicos botavam fogo nessas tendas, os pastores eram expulsos pelo prefeito, pelo juiz.
Houve uma história de perseguição do pentecostalismo que não é dos primórdios da nossa civilização. É de agora, dos anos 50.
Isso se mantém na memória desses pastores. Eles foram muito perseguidos. O protestantismo no Brasil foi muito perseguido.
A partir do momento em que há uma pacificação da cúpula, como o Edir Macedo está tentando agora, também há o padre da igreja que manda botar fogo na tenda do pastor.

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