São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995 |
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Um autêntico conto de Natal
MODESTO CARONE
A verdade é que pouca gente, mesmo entre os fãs do contista, ficou sabendo que na época em que a história foi concebida uma escassez de carvão atingiu os moradores da rua dos Alquimistas, situada na região do Castelo que domina a cidade (que aliás aparece como Kafka a conheceu numa panorâmica do filme expressionista "O Estudante de Praga", de Paul Wegener). O manuscrito foi para a gaveta e só veio à luz cinco anos depois, quando o escritor resolveu publicá-lo no suplemento de Natal do jornal "Prager Presse", em 25 de dezembro de 1921, ao lado das colaborações de outros ficcionistas como Robert Musil e Franz Werfel. Sem dúvida a escolha foi feliz, porque "O Cavaleiro do Balde", além do aspecto óbvio de um conto de fadas à maneira kafkiana, pode ser lido como um autêntico conto de Natal. A paisagem urbana gelada, a pobreza do cavaleiro anônimo, as súplicas que ele lança, a avareza e a malícia da carvoeira, os sinos que tocam e a manipulação poética da linguagem, parecem rearticular, na clave inconfundível de Kafka -que integra partículas de realidade na fantasia autônoma- a atmosfera e o cenário do "Christmas Carol", de Dickens, um dos seus autores prediletos. Mas nesta história -na qual, ao contrário daquela, quase nada acontece- Kafka constrói um mundo enigmático e sem remissão, onde os objetos assumem papéis inusitados e o protagonista realiza a experiência da frustração e da ameaça, uma vez que sua chance de sobreviver depende dos interesses e da vontade do outro. Ou seja: do mesmo modo que em "O Castelo" o agrimensor K. é interceptado antes de chegar ao destino, este novo cavaleiro da triste figura vê o seu apelo desviado pela mulher do carvoeiro (que transmite uma falsa informação ao marido) e por isso não consegue entrar em contato com a única pessoa capaz de ajudá-lo e a quem ele já havia reconhecido como um sol no firmamento. Assim é que, traído pelos ouvidos de um mercador e enxotado como inseto por uma Scrooge de avental, o cavaleiro de Kafka, agora transformado em outsider cósmico, ascende à região das geleiras para se ombrear, "secreto e solitário como uma ostra", aos atores mais conhecidos do drama universal kafkiano. A tradução hoje publicada em primeira mão pelo Mais! faz parte do volume intitulado "Narrativas do Espólio", a ser editado em breve na coleção Kafka, da editora Brasiliense. Texto Anterior: O CAVALEIRO DO BALDE Próximo Texto: Uma viagem pela violência Índice |
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