São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Um autêntico conto de Natal

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Cavaleiro do Balde" (Der Kübelreiter) foi escrito por Kafka no inverno de 1916. Nessa época, graças à iniciativa da irmã Ottla, ele estava instalado numa minúscula casa da rua dos Alquimistas, em Praga, onde redigiu os contos de "O Médico Rural", só publicados em 1920 na Alemanha. No projeto inicial, "O Cavaleiro do Balde" devia figurar entre as "pequenas narrativas" do livro, no qual aparecem os motivos do cavalo, do cavaleiro e da cavalgada, como é o caso de "Na Galeria", "O Novo Advogado" e "A Próxima Aldeia". Mas, por razões que não são muito claras, o texto foi suprimido pouco antes da edição do volume. De qualquer forma, consta que Kafka teria excluído "O Cavaleiro do Balde" por achar que havia nele excessiva "cor local", o que não acontecia com os outros 15 que compõem a obra.
A verdade é que pouca gente, mesmo entre os fãs do contista, ficou sabendo que na época em que a história foi concebida uma escassez de carvão atingiu os moradores da rua dos Alquimistas, situada na região do Castelo que domina a cidade (que aliás aparece como Kafka a conheceu numa panorâmica do filme expressionista "O Estudante de Praga", de Paul Wegener). O manuscrito foi para a gaveta e só veio à luz cinco anos depois, quando o escritor resolveu publicá-lo no suplemento de Natal do jornal "Prager Presse", em 25 de dezembro de 1921, ao lado das colaborações de outros ficcionistas como Robert Musil e Franz Werfel.
Sem dúvida a escolha foi feliz, porque "O Cavaleiro do Balde", além do aspecto óbvio de um conto de fadas à maneira kafkiana, pode ser lido como um autêntico conto de Natal. A paisagem urbana gelada, a pobreza do cavaleiro anônimo, as súplicas que ele lança, a avareza e a malícia da carvoeira, os sinos que tocam e a manipulação poética da linguagem, parecem rearticular, na clave inconfundível de Kafka -que integra partículas de realidade na fantasia autônoma- a atmosfera e o cenário do "Christmas Carol", de Dickens, um dos seus autores prediletos.
Mas nesta história -na qual, ao contrário daquela, quase nada acontece- Kafka constrói um mundo enigmático e sem remissão, onde os objetos assumem papéis inusitados e o protagonista realiza a experiência da frustração e da ameaça, uma vez que sua chance de sobreviver depende dos interesses e da vontade do outro. Ou seja: do mesmo modo que em "O Castelo" o agrimensor K. é interceptado antes de chegar ao destino, este novo cavaleiro da triste figura vê o seu apelo desviado pela mulher do carvoeiro (que transmite uma falsa informação ao marido) e por isso não consegue entrar em contato com a única pessoa capaz de ajudá-lo e a quem ele já havia reconhecido como um sol no firmamento. Assim é que, traído pelos ouvidos de um mercador e enxotado como inseto por uma Scrooge de avental, o cavaleiro de Kafka, agora transformado em outsider cósmico, ascende à região das geleiras para se ombrear, "secreto e solitário como uma ostra", aos atores mais conhecidos do drama universal kafkiano.
A tradução hoje publicada em primeira mão pelo Mais! faz parte do volume intitulado "Narrativas do Espólio", a ser editado em breve na coleção Kafka, da editora Brasiliense.

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