São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Em busca da expressão impura

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A poesia de Júlio Castañon Guimarães vem delineando uma trajetória lírica que vai do laconismo inicial a uma aceitação das potencialidades do discurso. Este novo livro, "Dois Poemas Estrangeiros", registra o momento de radicalização dessa busca de uma expressão dilatada e impura, ainda que conservando traços de uma dicção elíptica.
Desde sua estréia com "Vertentes" (1975), havia uma topografia acidentada de vozes e influências modernistas. O sujeito muitas vezes se ocultava na paisagem cultural da vanguarda, espécie de cartilha geográfica do menino experimental. Os óculos brincavam de bricolagem. Em "17 Peças" (1983) a linguagem se adensa no sentido do silêncio, execução de um programa de terraplanagem da tradição poética moderna. Assentado no canteiro de obras da página em branco, o poeta começa a selecionar os elementos necessários para forjar um destino: duas paisagens, uma lexicografia, quatro códices. As ferramentas do sujeito lírico trabalham segundo a lógica de uma aranha armando sua teia. "17 Peças" é um livro esquivo, onde a visualidade prefere as margens e insisti em ocultar-se nas dobras.
É a partir de "Inscrições" (1992) que Júlio Castañon encontra um ponto de equilíbrio entre as seduções do silêncio (recusa, corte, rigor) e a expansão do discurso (riscos, traços, vozes). O que nos trabalhos anteriores compunha um paisagem meramente cultural, agora é também registro da memória, letra impressa na pedra, inscrição do sujeito nos objetos: Cemitério da Matriz de Santo Antônio, Chafariz de São José, Órgão da Matriz de Santo Antônio, Casa do Padre Toledo, etc. As "17 Peças" de outrora adquirem, por sua vez, ora um caráter de fotografia, composição plástica ("Sem Título, Óleo Sobre Tela, 70x50 cm"), ora de concerto, ritmo ou solo musical ("Chet Baker Sings Again"). Apesar de ser uma música à beira do silêncio, já prenuncia uma expansão de sua expressão poética.
Este seu último trabalho, "Dois Poemas Estrangeiros", vem sob a chancela da Tipografia do Fundo de Ouro Preto, com projeto gráfico de Guilherme Mansur. O papel artesanal da capa prepara o espírito do leitor para a textura rugosa, repleta de relevos e materiais diversos, que encontrará na prosa reciclada dos poemas.
O título "Dois Poemas Estrangeiros" pode ser entendido no sentido de que são estranhos ao resto da obra. Ou seja, vindos de uma outra pátria, de um continente que o próprio poeta desconhecia, escritos numa língua que se apresenta como uma "estrada pelos ouvidos adentro". Em ambos os textos há um esforço descritivo que parte do real para um comentário lírico tecido pela subjetividade. Em outras palavras, a descrição manifesta um desejo de captar a realidade que cresce de fora para dentro: um pensamento entranhado na intimidade.
No primeiro poema, subverte-se a metáfora tradicional da estrada, com suas partidas ou chegadas, o trânsito na linha do horizonte. A estrada é modulada pelo ruído, som provocado pela queda dos corpos, música ruidosa que "tem eixo no oco do cérebro,/ onde em nó denso se acumula, um ápice,/ um instante em contínuo (...)". No segundo, o poeta descreve uma paisagem "outra" que "busca o que nesta não cabe,/ ou outras que rebuscam outras." O movimento é revelado pelo barroquismo do verbo "rebuscar", enovelado neste ir e vir, nas "margens do trajeto que recuam em avanço". Mais uma vez a descrição da paisagem real se oculta numa outra paisagem que se adentra.
A novidade de "Dois Poemas Estrangeiros" é a irrupção de uma lírica meditativa, feita de uma concentração dispersa. Por vezes somos tentado a pensar numa lírica que reunisse o palmilhar drummondiano pelas estradas de Minas com os volteios reflexivos de John Ashbery.
O que espanta em "Dois Poemas Estrangeiros" é a radicalidade com que um poeta até então extremamente contido, tão zeloso de seus limites, opera uma virada em sua produção. Ambos os poemas são de difícil leitura, desafiam e provocam o leitor. Reconheço neste estranhamento as palavras de Lezama Lima que, se não me engano, dizia que "só o difícil é estimulante".
É como se este consagrado tradutor de Francis Ponge e Michel Butor tivesse que se traduzir para uma outra língua e fosse o estrangeiro de si mesmo.

A OBRA
Dois Poemas Estrangeiros, de Júlio Castañon Guimarães. 12 págs. Tipografia do Fundo de Ouro Preto (r. João Batista Fortes, 50, Ouro Preto, Minas Gerais, CEP 35400-000, tel. 031/551-2848). R$ 15,00

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