São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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A saudade de um narrador

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

"Anastácia e Bonifácia", o primeiro romance do dramaturgo e ator Flavio de Souza, se insere em uma das mais fortes linhas do romance contemporâneo: recontar ou modificar uma história consagrada. A história, no caso, é a de Cinderela, a Gata Borralheira, já contada, com variações, por Perrault, pelos irmãos Grimm e pelas mais diversas tradições antigas (leia o texto abaixo).
O enredo, clássico, é simples, de domínio geral. Para o psicólogo e pedagogo Bruno Bettelheim, na sua "Psicanálise dos Contos de Fadas", "Cinderela" é o conto de fadas mais conhecido e apreciado e relata, como nenhum outro, "as experiências internas da criança pequena nos espasmos da rivalidade fraterna, quando ela se sente desesperadamente marginalizada pelos irmãos e irmãs".
Flavio de Souza tem uma idéia engenhosa. Ele resolve continuar a história do ponto de vista das duas irmãs de Cinderela, Anastácia e Bonifácia. Se, na história tradicional, as irmãs maltratavam a futura princesa, elas assumem agora o papel de vítimas da ira vingativa da um dia marginalizada Cinderela. Apesar de um bom ponto de partida, o desenvolvimento do enredo é problemático.
O autor estrutura a obra como um romance epistolar. Parece uma tentativa de não se afastar muito da sua vocação original -escrever diálogos (Flavio é autor de peças, como "Fica Comigo Esta Noite", e de seriados televisivos, como "O Mundo da Lua").
Acontece que, por mais que a troca de cartas possa ser vista, no limite, como a interação de pequenos monólogos, ela não mantém a forma ágil de um texto teatral ou televisivo. As cartas, em um romance epistolar, precisam de um mínimo de densidade para assegurar a força de uma construção narrativa essencialmente estática, o que não acontece em "Anastácia e Bonifácia".
O livro utiliza artifícios frágeis, inconsistentes para uma obra literária, como os nomes "engraçadinhos" das personagens: "Princesa Cinderella Castor Montserrat Monterey Astrobaldo" ou "Anastácia Tortelonga Castor Montserrat Arslam Tchaka".
Outro exemplo de elaboração menor pode ser notado quando, para mostrar a incultura de um personagem (o príncipe), o autor grafa as palavras de modo errado. Avalie os seguintes trechos:
"Precizamos proteger nosso mercado dos aproveitadores estranjeiros que tomaram as rédias finansseiras do Reino com a ajuda dos latifundiários corruptos e vendidos (...) Sonho acordado pensando nos tezouros em que iremos botar as mãos nas terras da mil e uma noites! Nas mulheres carnudas que iremos conhesser no sentido bíblico! Na prosperidade que iremos trazer para noço Reino!"
Trata-se de um recurso fácil, que serve mais à banalização da linguagem que a um trabalho de construção literária, provocativo, irônico.
Nos dois casos acima, a intenção -ser engraçado- permanece intenção. Na verdade, só irrita o leitor.
Se não consegue ser engraçada, restaria uma possibilidade para a paródia: provocar, por vias transversas, a reflexão sobre "questões relevantes". Assim, por exemplo, a ganância e o despreparo do príncipe poderiam remeter o leitor para a incompetência de grande número de políticos brasileiros ou a futilidade e a baixeza das personagens femininas para uma visão estereotipada do universo feminino -a "mulher burra", a "mulher fatal". O autor, entretanto, bloqueia tal possibilidade ao trabalhar com situações desgastadas pelo uso, na vã tentativa de (perdão pela tautologia) reatualizar clichês.
Ao buscar uma história de presença marcante no imaginário popular para escrever seu romance, Flavio de Souza cai em uma armadilha: deixa o leitor com saudade dos enredos do passado, de uma época de -diria Walter Benjamim- narradores.

A OBRA
Anastácia e Bonifácia, de Flavio de Souza. 205 págs. Companhia das Letras (r. Tupi, 522, CEP 01233-000, São Paulo, tel. 011/826-1822). R$ 18,00

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