São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Uma relação tão delicada

ELZA AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em diversos momentos históricos, é possível visualizar um quadro por meio do qual arte e ciência são considerados termos opostos, o primeiro ligado à "criação" e o segundo, à "descoberta das leis da natureza".
Entretanto, em várias ocasiões, é possível observar pontos em que os laços entre arte e ciência são fortalecidos. No século 19, Pasteur e Roentgen aplicam seus métodos de análise ao estudo das obras de arte. Em 1865, Pasteur afirma ver claramente uma aliança "possível e desejável entre ciência e arte", na qual o químico e o físico podem "ocupar um lugar ao lado do artista e esclarecê-lo". Anos depois, Roentgen descobre os raios X e tenta fazer, em 1895, a primeira radiografia de um quadro. (...)
No campo dos avanços tecnológicos e do estreitamento de laços entre arte e ciência, é possível detectar momentos especiais. No Renascimento, por exemplo, Leonardo Da Vinci demonstra estes laços nas conexões que estabelece entre o pensamento e os sentidos. Situa a arte como fonte de conhecimento, apoiada na investigação da natureza. Para Leonardo, a pintura apresenta-se aos sentidos "com mais verdade e certeza" do que as palavras. Manifesta-se a favor da experiência, "mãe de todos os conhecimentos", assente numa permanente "investigação concreta" por intermédio dos sentidos e dirigida para os mais ocultos aspectos e múltiplas facetas da natureza. A arte faz parte dessa investigação.
Ao longo da sua vida e da sua obra, pode-se verificar como o investigador no campo da ótica e da física atmosférica, observando as modificações da cor e da nitidez das formas na visão à longa distância, é capaz de sugerir a perspectiva atmosférica e a graduação da luz denominada "sfumato".
Essas investigações e técnicas associam continuamente o homem de ciência ao processo criativo e à sensibilidade estética. Para Leonardo, a "sensibilidade pictórica" faz com que os desenhos de paisagens, de topografia, de geologia e de fenômenos meteorológicos sejam não só admiráveis sob o prisma estético, mas também motivados por extrema precisão científica. Trata-se de visão imediatamente "real", embora transfigurada como síntese do artista, que cria protótipos de enigmática beleza, sonhos, retratos ou projetos de engenharia. Não se pode perder de vista obras como "Ginevra Benci", ou "Dama de Liechtenstein" (Galeria Nacional de Washington), "Virgem dos Rochedos" (Museu do Louvre) e dezenas de desenhos e projetos realizados com admirável habilidade. São obras dotadas de poderoso efeito -algumas delas causando, junto à população renascentista, impacto tão grande quanto as imagens da mídia atual. Consta que o cartão "Sant'Ana, a Virgem e o Menino" (Galeria Nacional de Londres) motiva filas para sua visitação, logo depois de sua execução.
O espólio gráfico de Leonardo que ainda se conserva é enorme. São mais de 4.000 folhas, entre as isoladas e as reunidas em códices, pelo próprio artista ou por outros. Essas páginas não constituem um "sistema fechado", mas documentam uma investigação experimental sempre nova e sempre criticamente insatisfeita. Encontram-se aí tratados complexos assuntos -da pintura à escultura e à arquitetura; dos artefatos para festas e cerimônias; da tecnologia e da mecânica militar, à cartografia e à topografia; das matemáticas e da geometria à ótica representativa (perspectiva) e fisiológica; da mecânica aplicada às máquinas e à mecânica pura.
Os seus estudos abrangem, ainda, desde a anatomia, que abarca o homem, à zoologia e da botânica à biologia. (1) E, por último, já em plena maturidade, essa curiosidade vai alargar-se à geologia, à hidrologia e à aerologia -compreendendo pesquisas voltadas para o futuro. Ao lado da profusão e densidade de interesses, pode-se dizer de Leonardo que os seus estudos constituem um verdadeiro ramo especializado, não apenas de história da arte, como também da história da ciência e da cultura no sentido mais amplo. (2)
Análises mais aprofundadas podem constatar que os intercâmbios entre arte e ciência são constantes ao longo dos tempos. Muitas vezes estão entrelaçadas com o mito, o poder e a religião. Os monumentos egípcios, gregos, romanos ou medievais (obras de arte orientais e ocidentais) surgem acompanhando novas matérias, técnicas, tecnologias e formando verdadeiras epistemologias acerca das culturas ousadas que os constroem. Não se deve esquecer que as grandes pirâmides egípcias fazem parte de um cemitério -Gizé. Na base de suas construções -sem o uso de tração animal ou rodas-, ocorrem desenvolvimentos técnicos e criativos admiráveis (retiradas de toneladas de pedras de rochas, transportes, cálculos, decorações magníficas somadas a maciços gigantescos). O correr da história demonstra que vários povos sabiamente conseguem investir nas propostas artísticas e científicas e obter dividendos.
Artistas, cientistas, filósofos, surgem como uma espécie de "termômetros de seu tempo". Transitam entre a imaginação, a experimentação e indagações acerca de fenômenos e problemas. Mas são sempre, também, personalidades originais, que se destacam pelos projetos de vida que elabora e soluções de questões que são vitais para a humanidade. As sínteses entre arte e ciência, estabelecidas por Leonardo, surgem extravasando uma fértil imaginação ocupada com a experimentação e o planejamento do espaço e questões de seu tempo (com desdobramentos para o futuro). Nestas sínteses, encontra-se um eixo básico de atuação: o processo criativo, capaz de somar campos distintos que operam objetos e metodologias específicos, mas que, unidos, rompem limites.
Quando um cientista, como o físico inglês Stephen Hawking, admite que "passear no tempo é possível"-, pelo menos teoricamente (na busca de fundir estudos de Einstein à mecânica quântica de Planck), pode-se perguntar: não é esta a ousadia que alimenta o sonho dos ficcionistas em ciência ou de muitos artistas? Para os envolvidos com questões científicas (ou artísticas), as possibilidades são suficientemente instigantes. Surgem como desencadeadoras e fomentam saídas e descobertas. São elas que incentivam o processo criativo e os momentos mais ricos para a humanidade.
Nestes parâmetros estão apoiadas, por exemplo, as preocupações de Mário Schenberg, quando estabelece correlações entre arte e ciência. Para o professor, físico e teórico da arte: "Há um paralelismo muito instrutivo entre a criação contemporânea nos campos da ciência e da arte, sobretudo nas ciências como a física que sofreram transformações revolucionárias". (3) Para Schenberg, a engenhosidade científica deve aproximar-se da atitude ousada e criativa do artista. Desse modo, desenvolve uma história da ciência com perspectivas e saídas múltiplas. Para ele, o cientista deve ter uma atitude aberta, deve ter dúvidas, "suspeitar das coisas". O cientista "...tem que estar sempre na margem do desconhecido (...). No conhecido, está o tecnólogo. E o que está na margem do desconhecido, é o problema da vida (...)". (4)
Adjacente a estas idéias, encontra-se a visão sobre o alcance desses campos e a interação dos mesmos com o mundo em mudança. Neste ponto, é significativo retomar a comparação que Max Weber estabelece entre a criação artística e a científica. (5) Para ele, a primeira desconhece a noção de progresso. Não existe obra ultrapassada na esfera artística, enquanto na científica, a desatualização do conhecimento é muito rápida -o saber científico implica sua ultrapassagem. (6) A inserção desse ponto nas correlações entre arte e ciência pode subsidiar questões cruciais que envolvem a celeuma "tecnicismo" versus "humanismo". Esta celeuma, na realidade, é uma extensão da que ocorre no pensamento contemporâneo. Não há como resolvê-la de pronto. Porém, ela merece um espaço e uma adequação que possibilitem à sociedade encontrar melhor o seu caminho e amadurecimento.
No eixo que envolve a vida cultural e educacional do país, esta celeuma é aguda. Por exemplo, na universidade, a visão tecnicista distorcida propõe sempre a urgente atualização dos equipamentos e da infra-estrutura, o que acaba levando a um paradoxo, pela velocidade da obsolescência dos equipamentos atuais. Ou seja, no limite, cursos, currículos e equipamentos, estariam todos em contínua atualização (e esgotamento), o que levaria a um absurdo.
A visão humanista distorcida propõe o ensino básico puro, não se importando nem com a realidade tecnológica nem com o mercado de trabalho. A função da universidade seria a de formar "cérebros". No limite, a universidade acaba se encerrando na torre de marfim, falando para si própria e formando profissionais afastados da realidade tecnológica e inadaptados ao mercado de trabalho.
A solução de compromisso só pode vir de uma síntese entre as duas visões. Dentro do quadro científico-tecnológico em contínuo movimento, o papel da universidade é o de fornecer ao futuro profissional "ferramentas básicas" e criativas, com as quais ele possa se guiar dentro do mundo em mudança. A universidade deve ser atualizada o suficiente para que o formando não sofra um choque cultural quando da sua entrada na profissão. Acompanhando a trajetória das correlações arte e ciência, a universidade pode liderar e organizar projetos engenhosos e estéticos. Em sintonia com a sociedade, pode encontrar soluções mais criativas para a complexidade urbana, tornando a vida mais saudável e solidária.

NOTAS
(1) Da Vinci, Leonardo. (Cat. circa - 1942). National Gallery of Art. Washington, 1991, pág. 275
(2) Rosci, Marco. "Leonardo da Vinci". In: "História da Arte". São Paulo, Salvat, 1978, págs. 263 e seguintes
(3) Schenberg, Mário. "Pensando a Arte". São Paulo, Nova Stella, 1988, págs. 194
(4) Hamburger, Amélia Império. "Nota Bibliográfica e Entrevista com Mário Schenberg". São Paulo, Instituto de Física/USP, 1984, págs. 25
(5) Weber, Max. "Sobre a Universidade: o Poder do Estado e a Dignidade da Profissão Acadêmica". Trad. Lólio L. de Oliveira. São Paulo, Cortez, 1989, págs. 69 e seguintes
(6) Tragtenberg, Mauricio. "Introdução ao Leitor Brasileiro". In: Weber, obra citada, págs. 30

ELZA M. AJZENBERG é professora de estética e história da arte da Escola de Comunicações e Artes da USP, coordenadora do Centro Mário Schenberg e coordenadora do Congresso Arte e Ciência. O texto acima é o extrato de um texto maior a sair no catálogo do Congresso

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