São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O mundo virtual dos físicos

HELIO GUROVITZ
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Vista o capacete, pegue o joystick e se prepare para viajar pela maior rede de computadores do mundo: a Internet.
Você olha à direita e vê a porta da Nasa. Entra. Ao seu lado, um apresentador o convida a conhecer o ônibus espacial. Você dirige o joystick até ele, dá um clique e pronto: está sentado na cabine de comando e pode começar a pilotar.
Ficção?
Não para os participantes do Chep'95 (Computer in High Energy Physics, ou Computação em Física de Altas Energias), um dos maiores congressos mundiais de física, realizado pela primeira vez no Brasil, no mês passado.
Físicos de altas energias vivem num mundo estranho. Estão preocupados com algumas questões que mais parecem metafísica, como a origem do Universo ou a constituição da matéria.
Também falam uma língua estranha -ininteligível- com palavras como quark top, neutrino, estação de trabalho com chip de processamento gráfico ou computador de alto desempenho com arquitetura maciçamente paralela.
Mas, de vez em quando, têm idéias capazes de revolucionar a vida de quem pensa que a rede Internet é apenas um personagem da próxima novela das oito.
Foram físicos de altas energias que criaram a forma mais popular de usar a maior rede de computadores do mundo: dentro da Internet, inventaram a WWW (World Wide Web), algo como "teia de alcance mundial".
Na WWW, um computador tem acesso a máquinas espalhadas pelo mundo todo de forma transparente ao usuário. Basta clicar o botão do mouse no ponto desejado da tela para carregar textos e imagens guardados numa máquina distante.
No congresso Chep'92, em 1992, físicos do Cern (Laboratório Europeu de Física de Partículas) apresentaram a linguagem em que são escritos os documentos da WWW, conhecida como HTML (Hypertext Markup Language).
Nem sempre o acesso a esses documentos é rápido, mas, em apenas três anos, a WWW transformou a Internet, de uma curiosidade acadêmica, num fenômeno mundial de comunicação.
"Criamos a WWW porque precisávamos", disse à Folha Chris Jones, 50, chefe da Divisão de Computação e Redes do Cern.
Isso porque, no mundo da física de altas energias, comunicação é fundamental. São cerca de 8.000 pessoas espalhadas pelo mundo todo, trabalhando 24 horas por dia de modo integrado em projetos a milhares de quilômetros.
Na comunidade das altas energias, não bastam encontros como o Chep -que reuniu no Rio cerca de 350 físicos (uns 250 estrangeiros). Os avanços são bem mais velozes que o prazo de 18 meses que separa um congresso do outro.
No Cern, por exemplo, está sendo desenvolvido aquele que será o maior acelerador de partículas do mundo, o LHC (Large Hadron Collider). Nele, partículas e mesmo átomos inteiros poderão ser levados a velocidades próximas à da luz e a níveis inéditos de energia.
A colisão de alguns tipos de partículas do Universo pode trazer aos físicos respostas para as questões aparentemente metafísicas em que estão interessados: o que formou a matéria, de onde veio tudo?
Mas a construção do acelerador não é nada metafísica.
Para pôr para funcionar toda a aparelhagem do LHC dentro do túnel de 27 km de circunferência do Cern, em Genebra (Suíça), é preciso um investimento inicialmente estimado em US$ 2 bilhões.
Pesquisadores espalhados pelo planeta devem planejar e desenvolver as peças para os experimentos, e não pode haver erro na hora dos encaixes, pois o túnel de Genebra já está atravancado com outros aceleradores do Cern.
Uma das soluções encontradas para facilitar a comunicação entre os projetistas foi a WWW. Mas Jones veio ao Brasil mostrar uma outra, que pode originar a próxima geração de programas para navegar pela Internet.
No Chep'95, pesquisadores do Cern fizeram uma demonstração de como andar pelo túnel do Cern e estudar o projeto do novo acelerador usando realidade virtual.
Munido de capacete e óculos especiais, o usuário passeia por imagens em três dimensões do túnel e, quando quer, aciona alguma peça do acelerador com o joystick. Aí o computador -acoplado à parafernália e à Internet- busca informações sobre a peça na rede.
Entre as informações pode estar o projeto da peça, um texto explicando para que ela serve, desenhos orientando as especificações de sua fabricação ou mesmo outro "mundo virtual", outro trecho do túnel e até a cidade acima dele.
Os dados viajam pela Internet desde um computador no local onde a peça é desenvolvida, que pode estar do outro lado do mundo. Para o usuário, porém, tudo se passa como se ele caminhasse dentro do túnel em Genebra.
Claro que ele não é obrigado a usar capacete e joystick. Pode fazer tudo numa tela de computador. Sua mão direita manipula um mouse, que faz o papel de joystick. A esquerda mexe numa esfera rolante, que simula os movimentos da cabeça (veja foto nesta página).
A idéia de integrar os recursos da Internet na forma de realidade virtual foi lançada ano passado, quando Mark Pesce divulgou a VRML (Virtual Reality Markup Language), uma sucessora da HTML -a linguagem da WWW.
Com base na linguagem de Pesce, Jean-Francis Ballaguer e Enrico Gobbetti, do Centro para Estudos Avançados, Pesquisa e Desenvolvimento, na Sardenha (Itália), começaram a desenvolver um programa de navegação em realidade virtual para ser acoplado a um software comum de acesso à WWW (como o popular netscape).
Foi aí que Silvano de Gennaro, 42, do Cern, decidiu fazer do túnel do acelerador um mundo virtual. Na verdade, vários mundos, integrados no projeto Venus (Ambiente de Navegação Virtual nos Sítios Subterrâneos). O resultado que ele apresentou no Rio, além de essencial para planejar experimentos no LHC, tem aplicações exóticas.
A altura de um dos prédios do acelerador que devem ser construídos em solo, por exemplo, taparia a visão do Mont Blanc (a montanha mais alta da Europa, com 4.808 m) para os habitantes de Cessy, aldeia vizinha de Genebra.
No mundo virtual é possível ver o prédio da perspectiva dos moradores e perceber até que altura ele não esconde o pico nevado, cartão-postal da aldeia dos Alpes. "Fizemos então um modelo politicamente correto", brinca Jones.
Segundo ele, o prédio deve ser construído com a altura necessária para fazer um componente do acelerador, mas depois deve perder uns dois andares, por causa do impacto ambiental na paisagem.
O software de Balaguer e Gobbetti que permite todas essas simulações deve ser apresentado em dezembro no simpósio VRML'95, em San Diego (EUA). Mas o programa, chamado "i3D", já está na Internet. De graça (para iniciados, ver "http://sgvenus.cern.ch/i3d").
Para fazê-lo funcionar, porém, ainda são necessários computadores sofisticados, como a estação Silicon Graphics usada no Rio (a tal "estação de trabalho com chip de processamento gráfico").
Os mundos virtuais ocupam em média 2 milhões de bytes (umas 40 vezes o tamanho dos maiores documentos da WWW). Com a atual velocidade e os congestionamentos na Internet, carregar um deles pode levar horas. "Mas a rede tende a ficar mais veloz, e o mercado de videogames vai gerar chips cada vez melhores para processamento gráfico", diz Jones.
Se isso acontecer, não vai ser a primeira vez que físicos de altas energias trazem uma novidade para o mundo dos computadores.
Há cerca de cinco anos, físicos do Laboratório Nacional Fermi, em Batavia (Illinois, EUA), uniram 612 processadores numa única máquina (cada computador pessoal costuma ter só um processador, espécie de cérebro da máquina).
Nascia o supercomputador ACPMAPS, pioneiro dos chamados "computadores de alto desempenho com arquitetura maciçamente paralela". Ele fazia 50 bilhões de contas num segundo. Hoje seus sucessores já multiplicaram essa velocidade por 20: fazem até 1 trilhão de contas por segundo.
"Para fazer o ACPMAPS tivemos muita colaboração de brasileiros do CBPF (Centro Brasileiro para Pesquisas Físicas)", disse à Folha Tom Nash, 52, diretor-assistente do Fermilab. Foi ele que ajudou o brasileiro Alberto Santoro, 54, do CBPF, a organizar no Rio de Janeiro o Chep'95.
Supercomputadores são necessários para que físicos como eles façam os trilhões de contas resultantes dos experimentos que detectam choques de partículas.
Santoro e Nash são apenas duas das mais de 400 pessoas que, analisando essas contas, fizeram no ano passado a maior descoberta dos últimos 18 anos na física de altas energias: detectaram o quark top. O top era a partícula que faltava para comprovar uma complicada teoria que diz de que é feita a matéria e pode explicar como se formou o Universo.
Agora Nash participa de um plano para mapear da forma mais completa possível um trecho do céu. Também trabalha num experimento para isolar neutrinos, partículas que, como "fantasmas", parecem atravessar qualquer barreira.
À espera dos resultados, veste o capacete, pega o joystick, dá um passo com sua sandália -que bem poderia usar quando protestava contra a Guerra do Vietnã- e continua sua viagem pelo estranho mundo da física de altas energias.

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