São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O Eros de uma amizade

SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERLIM

Depois do lançamento em 1992 da correspondência de Hannah Arendt com Karl Jaspers e sobretudo depois da publicação este ano de "Entre Amigas", as cartas trocadas entre Hannah Arendt e Mary McCarthy, acaba de sair na Alemanha, agora, a correspondência de Arendt com o dirigente sionista Kurt Blumenfeld (1884-1963).
Arendt conheceu Blumenfeld em Heidelberg (Alemanha). Com o advento do nazismo, Hannah foi para exílio, primeiro em Paris e depois nos Estados Unidos, onde reencontrou Blumenfeld. Os dois entraram em choque frontal quando Hannah defendeu a criação de uma federação binacional árabe-judaica, enquanto Blumenfeld, embora sensível à necessidade de um entendimento com a população árabe, insistia na fundação de um Estado judeu.
Terminada a guerra, Blumenfeld emigrou para a Palestina. Em 1961, Arendt foi a Israel para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann. Os artigos de Arendt, em que ela acusou os Conselhos Judaicos, durante a guerra, de terem colaborado com os nazistas na "solução final", despertaram enorme escândalo. Já gravemente doente, Blumenfeld ficou indignado com Hannah.
Ela teve ainda uma última explicação com Blumenfeld, poucos dias antes da morte do seu amigo, mas não se sabe ao certo se os dois chegaram a se reconciliar.
Vinte anos mais velho que Hannah, Blumenfeld pertenceu ao círculo seleto dos seus pais "adotivos", do qual também faziam parte Martin Heidegger (17 anos mais velho) e Karl Jaspers (23 anos mais velho). Esse carinho filial, não isento de um certo erotismo, se manifestou desde o primeiro encontro, em Heidelberg, em que os dois saíram de braços dados, cantando e declamando poemas de Heine.
Tudo isso transparece no tom das cartas. Ela usa às vezes uma linguagem infantil, em expressões como "bitte, bitte", com que as crianças pedem um doce, ou diz estar "soco entzückt", tão, tão encantada! Blumenfeld cita com prazer evidente uma expressão de Hannah, em que ela fala no "Eros da amizade" e lembra que os dois se despediram, em 1933, embriagando-se numa Weinstubo berlinense e recitando versos gregos.
Preocupada com a saúde do amigo, Hannah diz em uma de suas cartas que não pode imaginar um mundo em que ele não estivesse presente. Ele interpreta isso, ou finge interpretar, como uma carta de amor, e diz ter escondido essa carta de sua mulher. Tem ciúmes de Jaspers e diz que não leva muito a sério sua profundidade intelectual, porque só respeita os filósofos que não entende, e Jaspers é tão claro, que até ele pode compreendê-lo. Acaba por visitar Jaspers, mas discorda de suas opiniões sobre a questão judaica.
Essa é, para Blumenfeld, a questão verdadeira e única, política e existencialmente. Sua vida é o Estado de Israel. E no entanto ele discorda de quase tudo o que vê na Palestina. Alarma-se com o chauvinismo judaico e com o fortalecimento da direita. E sente-se profundamente inconfortável com os judeus orientais, que nunca passaram pela experiência do convívio com o mundo alemão e europeu.
Pois se Blumenfeld é contra a assimilação, pela qual os judeus abrem mão de sua identidade, também é contra o gueto, que impede uma interação produtiva com o outro, compatível à que ocorreu na Espanha, em que a cultura judaica dialogou com a moura e a cristã. E no entanto a nova geração está querendo eliminar o passado europeu do judaísmo e inventa para isso mitos de origem pelo qual Israel se legitima por referência direta ao Velho Testamento, escamoteando, com isso, a própria constelação histórica à qual o país deve sua existência -o sionismo.
Hannah Arendt podia acompanhar Blumenfeld em muitas dessas posições, sobretudo na crítica ao nacionalismo judeu. Mas, por mais que os dois amigos quisessem atenuar as divergências, elas existiam, e foi Blumenfeld que as articulou. Segundo ele, Hannah tinha cada vez menos interesse por Israel, enquanto para ele "cada regresso a Israel era uma volta para casa, para a bem-amada a quem se é fiel". Na opinião de Blumenfeld, ela não podia entender que se amasse o povo judeu, nem que se sentisse a necessidade de dar-lhe um chão, porque para ela o importante era justamente a ausência de chão, o "Bondenlose".
A análise de Blumenfeld não podia ser mais exata. Se ele era sedentário, Hannah era nômade. Ela não tinha nem desejava ter raízes. Numa de suas cartas, ela se diz "uma boêmia, que não tem raízes em nada que possa chamar seu, e por isso tem que levar consigo o seu ambiente onde quer que vá, ou antes, tem que produzi-lo sempre de novo". Para Hannah, o que contava era o momento da fundação, da geração revolucionária ou comunicativa do poder, em que os homens começam sempre de novo, pouco importando o solo em que se realize essa fundação.
O conceito de povo, para ela, era problemático. Ela se sentia judia, mas a importância que atribuía à esfera política, na qual é essencial a capacidade de julgar, que supõe a empatia com os pontos de vista de todos os homens, a levava a ser mais kantiana que sionista, a pensar menos em termos de povo que de espaço público.
Tudo isso tem uma atualidade perturbadora, à luz dos neonacionalismos que fervilham em toda parte. O diálogo entre Blumenfeld e Arendt parece ecoar ainda, na polêmica atual entre os que defendem a necessidade de estabelecer estados nacionais homogêneos, com base em critérios étnicos, culturais e religiosos, e os que acolhem todas as diferenças, desde que elas se subordinem a uma cultura democrática comum, ou na polêmica entre um historismo conservador que quer fincar suas raízes num chão cultural e um pensamento universalista que não precisa desse chão.
As cartas não lidam apenas com a questão judaica. Falam de viagens à Suíça e de almoços em Annecy. Há de tudo, até um comentário de Blumenfeld sobre o Brasil, país em que "a pequena camada de homens que vive na abundância não vê a miséria das massas esfomeadas".
A galeria de personagens inclui figuras ilustres, embora tratadas com alguma irreverência, como Scholem, "inteligente, vaidoso e maluco", Buber, que "consegue combinar magistralmente a santidade com os negócios", Horkheimer, oportunista inveterado, e Brecht, que não escreveu uma linha que prestasse depois que foi para a Alemanha Oriental, "assim se vingam os deuses, pois não se pode brincar com Apolo", diz Hannah.
Mas os protagonistas das cartas são mesmo Hannah Arendt, que fica "entre todas as cadeiras", sem se sentar em nenhuma, e Kurt Blumenfeld, que apesar de sua opção por Israel disse não "pertencer a nenhum partido e a nenhum grupo". Dois individualistas que não concordavam com ninguém, nem sequer um com o outro, mas que tinham em comum a tradição cultural européia, a paixão da verdade -"quando nos calamos", escreve Blumenfeld, "abandonamos o mundo aos canalhas"- e sobretudo o que Hannah chamava "amor mundi", um grande "sim" à vida e à ação.

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