São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O GRANDE JOGO

NORMAN MAILER

Na segunda-feira à noite, uma semana atrás, quando todos nos EUA se espantavam com o fato de o júri no julgamento de O.J. Simpson ter tomado uma decisão em menos de quatro horas, eu jantava com um amigo íntimo, o advogado de defesa Ivan Fisher. Como muitos outros bons advogados, Ivan não sabia dizer naquele momento qual seria a decisão do júri, mas tinha certeza de uma coisa: que o júri havia reagido com ira.
E, de fato, foi o que aconteceu. A ira foi imensa. E eu diria que ela surgiu do fato de se olhar a vida norte-americana desde um ponto de vista negro. Nesta entrevista, habilmente dirigida por meu filho Michael (que está familiarizado com minhas atitudes), pretendo tentar apresentar tal ponto de vista.

Michael Mailer - Eu me lembro. Um ano atrás você dizia que o caso O.J. Simpson iria tornar-se a pior coisa que já aconteceu às relações entre brancos e negros, em muito tempo. Você observou que, quer O.J. fosse absolvido ou considerado culpado, essas relações iriam tornar-se ainda piores.

É claro que esses brancos não estão levando em conta a atitude que a maioria dos negros tem em relação à Justiça norte-americana. Os negros a vêem como uma justiça branca; portanto, não é justiça. É um jogo jogado por jogadores, às vezes por jogadores muito habilidosos. Quando uma equipe tem à disposição consideravelmente mais dinheiro do que a outra, o time dos titulares acaba jogando contra os juniores. Essa tem sido a experiência dos negros nos tribunais. Os negros pobres têm advogados de defesa indicados pelos tribunais. Por isso eles vêem a Justiça como um jogo que eles costumam perder.
Mas nós, enquanto brancos, procuramos nos apegar à idéia de que a Justiça é um cálice sagrado, e nossos tribunais de justiça, altares. Não gostamos de reconhecer que não apenas nos processos criminais, mas mais ainda nos cíveis, o julgamento continua sendo um jogo. Às vezes esse jogo é jogado por apostas baixas, às vezes por apostas muito altas; às vezes por jogadores medíocres, ocasionalmente por jogadores extraordinariamente hábeis, mas o máximo que podemos dizer pelo processo judiciário nos tribunais é que se trata de um jogo em que até mesmo a Justiça é servida, às vezes.
Michael - Quer dizer que quem joga melhor ganha o jogo?
Norman - Exatamente.
Michael - Mas, com certeza, nem todas as pessoas no sistema legal, incluindo os jurados do caso Simpson, acreditam que a justiça seja um jogo?
Norman - Acho que a atitude negra em geral -e é claro que estou generalizando: às vezes só se encontra a verdade, contrapondo-se nossas generalizações a outras-, mas, sim, acho que a atitude negra geral talvez seja a de que os brancos põem uma ênfase enorme sobre inocente ou culpado porque desse modo podem descartar as questões sociais mais amplas, varrê-las para fora da quadra. Focalizar a inocência ou culpa individuais favorece a vantagem do establishment branco.
Uma vez que você afirme que a justiça precisa ser servida em cada caso individual, você pode pegar um centésimo do corpo social, altamente imperfeito, e fazer de conta que isso é justiça para todos. Desse modo os brancos podem se sentir um pouco menos culpados em relação ao racismo, às desigualdades de renda e aos sem-teto. Mas, do ponto de vista negro, é um jogo, no qual a bola está com os brancos.
Os negros já têm um profundo senso das injustiças das quais foram vítimas no decorrer de vários séculos. De um ponto de vista negro, praticamente não importa se O.J. é inocente ou culpado. Ele não é culpado porque esse jogo precisa ser ganho. Isso servirá como uma pequena compensação pelo passado. Pela lógica negra, não é bom nem apropriado permitir que o caso O.J. seja separado de todos os outros males que eles sofreram. Que se dane, portanto, se os brancos sentiram que a absolvição de O.J. foi uma terrível injustiça. Que os brancos reconheçam que os negros sofreram um número imenso de injustiças, pelas quais não receberam nenhuma compensação. O.J. é sua recompensa.
Os negros estão dizendo, de fato: "Não estamos interessados em servir à justiça branca de vocês. Preferimos o nosso tipo de justiça. Nossa justiça é obtida pelo fato de podermos chegar a nosso próprio sentido de equilíbrio pessoal. E isso só pode advir da compensação emocional. Compensação pelo que nos foi feito no passado".
Michael - Você não está dizendo, também, que neste caso os negros estão se beneficiando de um sistema que normalmente pende a favor dos brancos?
Norman - Não acho que eles estejam tentando se beneficiar do sistema. Em lugar disso, estão dizendo: "Não estamos nem aí para o tipo de justiça de vocês. Sua justiça eleva questões menores, atribuindo peso maior a elas do que às questões importantes. Aí vocês podem se embalar na ilusão de que essas questões menores estão cuidando do todo".
Permita que eu dê um exemplo que se afasta um pouco desse caso. Em 1969, quando eu era candidato à prefeitura de Nova York, vários brancos influentes vieram até nós e disseram: "Se você conseguisse criar um bom programa de bem-estar social, talvez as pessoas começassem a lhe levar a sério". Então Breslin e eu fomos falar com um grupo de mulheres no Harlem que vivem da previdência social. No último andar de um cortiço havia um apartamentinho e duas mulheres negras grandes e fortes sentadas diante de uma mesa comprida. Nem sequer conseguimos abrir a boca.

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