São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O GRANDE JOGO

NORMAN MAILER

Norman - Sim. Os anti-simpsonitas têm as evidências do DNA; os pró-simpsonitas têm a corrupção policial. Os brancos estão furiosos porque parece que o júri não deu atenção ao DNA, segundo o qual existe uma certeza de sete bilhões contra um de que era sangue de O.J. Bem, podem perguntar os negros, quem mexeu com o sangue?
Além disso existe a dúvida razoável. Duas pessoas são massacradas num banho de sangue e apenas algumas gotinhas de sangue são encontradas na casa de O.J.? Ódio assassino cego, seguido por um comportamento calmo e ordeiro? Separados por apenas 20 minutos? Como não pode haver lugar para dúvidas razoáveis, perguntam os negros? Sete bilhões contra um, dizem os brancos. Fuhrman, dizem os negros. Negros sem fim já foram presos porque não dispunham do dinheiro necessário para jogar o jogo de alto grau de habilidade profissional chamado "Justiça nos Tribunais".
Michael - Ainda há muitos brancos sofrendo por causa do veredicto.
Norman - Os brancos são realmente apegados à lei. Eles cresceram com a lei. Para alguns deles, é a última coisa que ainda resta para se acreditar. Vá à Justiça e você encontrará justiça. Os brancos não gostam de encarar a lógica negra, que vê a justiça real acontecendo apenas em decorrência de transformações reais da sociedade, que surjam das profundezas de um processo democrático com infinitas contradições e paradoxos.
Por isso volto a dizer: vamos, enquanto brancos, tentar olhar as coisas desde o ponto de vista negro, pelo menos um instante. Talvez alguns poucos negros cheguem até a olhar os brancos desde um ponto de vista mais parecido com o nosso. Enquanto as duas raças não começarem a compreender a grande separação que existe entre suas premissas básicas, não iremos a lugar algum. Tomemos o caso de uma generalização muito ampla: os brancos, por exemplo, acreditam na tecnologia. Os negros, eu diria, acreditam nas forças divinas, na escuridão e na luz.
Michael - Por que a tecnologia precisa ser vista como inimiga das pessoas negras? Por que não pode ser vista por eles como um meio de chegarem até o nível seguinte de seu relacionamento com os brancos? Por que precisa ser argumento espiritual contra argumento tecnológico?
Norman - Vamos deixar essa discussão para outro lugar. Tentarei apenas dizer aqui que acredito que o terrorismo parece aumentar lado a lado com a tecnologia. Assim, é possível que nunca cheguemos a ter tanta tecnologia quanto esperamos. O verdadeiro problema é ver se a natureza humana pode se tornar generosa o suficiente para criar sociedades vitais, com ou sem tecnologia.
Michael - Você quer dizer que desde um ponto de vista negro, O.J. era o protagonista e o sistema judiciário era o antagonista. No entanto, nesta telenovela, as mortes de uma linda mulher e de um jovem bonitão foram relegados a segundo plano. O que você diz da voz de Nicole?
Norman - A voz de Nicole? Você quer dizer sua voz no telefonema da linha 911?
Michael - Sim. Esse caso tem se preocupado muito mais com O.J. do que com Nicole. O que podemos dizer agora, em prol dela? Onde estiveram seus direitos?
Norman - Sim. (pausa) Deixe-me pensar sobre isso antes de responder. Essa talvez seja a pergunta mais difícil que você fez até agora. Porque é verdade: os direitos de Nicole não foram muito observados neste caso. Ela não existe, enquanto pessoa, tanto quanto existe enquanto vítima. E, para a maioria das pessoas, uma vítima significa menos do que uma pessoa. Mas a promotoria decidiu dar ênfase ao chamado 911, em 1993, quando ela implora por proteção. A defesa decidiu que examinar outros aspectos de Nicole seria abrir sua defesa a só Deus sabe o quê. Poderia ter levado à colocação de O.J. no banco das testemunhas. A defesa achou que estava ganhando, e tinha razão. Ela apostou que conseguiria ganhar sem colocá-lo no banco das testemunhas.
Michael - Tudo bem. E Nicole, como ficou?
Norman - O problema crucial para todos os envolvidos era que O.J. e Nicole tiveram um casamento complexo. Um monte de coisas acontecia em ambas as direções, vindo de ambas as partes. Não é que O.J. fosse simplesmente um bruto, mesmo que saibamos que ele foi violento com ela em pelo menos duas ocasiões. Mas a última instância registrada de violência física contra ela aconteceu, se não me engano, em 1989.
Nicole era uma mulher excepcionalmente bela e é possível que tenha feito O.J. pastar bastante. Não estou tentando justificar atos de brutalidade cometidos contra mulheres. Sou o último homem cuja história pessoal poderia permitir tal coisa. Estou dizendo que, quando você começa a interpretar um casamento que se tornou violento, muita coisa acontece entre homem e mulher. E, no caso dele, tanto a promotoria quanto a defesa, por diferentes motivos, decidiram não entrar em detalhes sobre o casamento. Essa decisão de evitar o assunto do casamento foi estratégica, até mesmo política. Cada lado sentiu que era melhor para ele não se aprofundar no exame do relacionamento. A promotoria não queria que a defesa chamasse testemunhas que pudessem testemunhar que Nicole havia feito coisas dolorosas a O.J. Do ponto de vista da promotoria, a imagem de Nicole não devia ser maculada. E a defesa, repito, não queria se aprofundar numa situação que pudesse requerer que O.J. fosse para o banco das testemunhas.
Assim a pergunta ainda está em pé, ao lado de todas as outras coisas terríveis sobre esse caso. Nicole se transformou no fantasma do processo. Ela nos assombra. E ela se tornará uma obsessão para todas as mulheres que estão extremamente preocupadas com a violência masculina em relação ao sexo feminino. Isso também arma muitas mulheres que são intensamente politizadas e implacáveis. A mentalidade delas se torna mais totalitária. Mas é evidente que existe uma mentalidade opressiva da esquerda e também da direita.
O efeito líquido deste caso é aumentar o potencial de totalitarismo nos EUA. E, se você perguntar o que devemos fazer a respeito, direi que às vezes é preciso simplesmente fazer uma pausa e sentir a fadiga emocional e filosófica de um assunto infeliz, e depois de contemplá-lo por muito, muito tempo, tudo que você pode dizer é: "Ainda não sei". Afinal, esse não é o único problema que temos. Temos muitos, alguns deles imensos, e talvez da soma desses problemas (porque a democracia, espera-se -sempre se espera- possui recursos que ainda não foram explorados) encontremos soluções, ou pelo menos continuações. Mas, neste momento, tudo que posso dizer é que se você está lidando com alguém que não está bem de saúde e ele ou ela de repente cai vítima de mais uma doença abominável, você não pode fazer de conta que aconteceu algo de bom. Repito: o caso O.J. Simpson foi uma praga espiritual para os EUA, do começo ao fim, não importa quem ganhou.
Michael - Deixe-me te perguntar uma coisa. O último filme de Gus Van Sant, "To Die For", retrata a ambição de uma correspondente de TV que topa fazer praticamente qualquer coisa para aumentar sua fama e seu dinheiro, mesmo que isso envolva assassinato. O.J. tem a possibilidade de faturar entre 50 e 100 milhões de dólares com este julgamento por assassinato. O que isso revela sobre a natureza da fama?
Norman - Muitas pessoas, e talvez eu seja uma delas, talvez dissessem que a celebridade se transformou em nossa primeira doença nacional. É o preço que pagamos por não ter deuses nem líderes nem uma sociedade que possamos respeitar. Nem mesmo a promessa do futuro, porque a tecnologia é uma presença enorme e frequentemente sinistra nas vidas de muitos americanos. Não existe, portanto, nem sequer um futuro que possamos antecipar. E, quando você não faz idéia do que os próximos 10 ou 20 anos irão provavelmente trazer, já que a vida está se transformando tão rapidamente, então os deuses da mídia do momento se tornam imensos. Hoje, no "Times", alguém de uma agência publicitária disse que achava que O.J. é culpado, mas acrescentou que é claro que esse assunto pode render tanto dinheiro que não podemos ignorar O.J.
Michael - Esse caso teve algum aspecto positivo?
Norman - Teve uma vantagem estranha. O caso talvez nos force a examinar os meios pelos quais deixou de ser permissível ganhar dinheiro. O pressuposto básico do capitalismo norte-americano recente é que se você ganha dinheiro, então está tudo bem. O dinheiro é seu próprio agente de limpeza. É capaz de limpar até mesmo tua alma. Essa é a lógica. Se as pessoas ganham dinheiro suficiente, todo o resto se cuidará sozinho. Bem, é possível que não. E, no momento em que as pessoas se derem conta de que O.J., culpado ou inocente, está faturando US$ 50 a US$ 100 milhões em cima de uma tragédia, talvez comecemos a dizer: "Qual o problema com nossos valores que têm tanta falta de valores que acabamos impelindo qualquer anomalia ou distorção para nossa vida pública?". É preciso impor limites à riqueza ultrajante. Simplesmente há pessoas pobres demais por aí.

Tradução de CLARA ALLAIN

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