São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O GRANDE JOGO

NORMAN MAILER

Uma delas disse: "A sra. Goldplate, na Quinta Avenida, diz que estou recebendo seguro desemprego, mas tenho um Cadillac. Eu digo a ela: 'Meu Cadillac fica na garagem o tempo todo, eu o tenho há 12 anos e não tenho como pagar as prestações. E ela tem um Rolls Royce com chofer' ". A outra disse: "A sra. Silverspoon, em Park Avenue, diz que eu tenho cinco filhos ilegítimos e recebo dinheiro da previdência para todos eles. Eu digo: 'Ela que se foda'. Eu dei à luz meus próprios filhos. Ela não. Ela fez sete abortos".
Aí essa mulher disse: "Queremos nossa parte do dinheiro desperdiçado".
Onde encontrar uma resposta? Será que podemos fazer de conta que não há desperdícios imensos no topo da escala social? Todos nós conhecemos o exemplo de Lee Iacocca pedindo a seus funcionários, na Chrysler, que aceitassem receber um pouco menos, enquanto ele ganhava US$ 17 milhões por ano.
Michael - Está bem, os negros querem sua parte no desperdício. Ótimo. Será que a soma de dois erros dá um acerto?
Norman - No que diz respeito aos negros, isso não passa de mais uma arapuca: dizer que dois erros não dão um acerto é joguinho dos brancos. Mas são os brancos que definem as regras. Mas, quando as pessoas são pobres, o nome do jogo é satisfação emocional. Muitas vezes esse é seu único capital.
Michael - Está bem, o júri votou pela absolvição. Você vai dizer que esse veredicto diminui o abismo entre negros e brancos? Ou será apenas uma maneira cara de aumentar a ira que os brancos sentem em relação aos negros?
Norman - Sim, agora estamos ainda mais distantes de fazermos uma ponte sobre qualquer coisa. O veredicto foi bom para a emoção negra, mas terrível para os brancos. Agora eles sentem que as reações negras são totalmente irresponsáveis. Como se pode viver e trabalhar, dirão os brancos, com pessoas que não respeitam os fatos, que não vivem emocionalmente em nossa sociedade, não compreendem nossos sentimentos.
É claro que os negros sentem a mesma coisa em relação aos brancos. Meu temor, desde o início, tem sido que, se não pudermos encontrar algum meio para negros e brancos se juntarem, esse país vai se dirigir ao fascismo.
Michael - Ao fascismo americano? É o único lugar para onde podemos ir, partindo daqui?
Norman - Não iremos tão longe a não ser que ocorra uma forte depressão. Mas, se tivermos um grande fracasso econômico nos EUA, estaremos a caminho do arame farpado. Se os liberais acham que os republicanos estão sendo duros demais com os negros já agora, considere o que vai acontecer numa depressão de verdade.
Assim que houver tumultos nos guetos, muitas bases inativas do Exército se transformarão em campos de detenção. Teremos um fascismo de facto, com crescente repressão da mídia. A única coisa da qual podemos estar certos é que não importa como os líderes venham a descrevê-lo, não será com a palavra fascismo.
Michael - Isso será culpa inteiramente dos brancos? Será que alguns tipos de intransigência negra também não estão ajudando a provocá-lo?
Norman - Estão, é claro. Os negros precisam dar seu grande passo em direção às pessoas brancas. Se os negros não concederem aos brancos algum perdão pelos pecados de séculos, nunca vamos conseguir conviver e as coisas só irão se agravar para os negros. E, com o tempo, irão se agravar para os brancos.
Michael - Se o veredicto tivesse sido "culpado", será que um dano maior teria sido infligido a este país, em termos de relações entre negros e brancos?
Norman - Acho que os negros teriam visto sua ira justificada e sentiriam que o veredicto era uma continuação do domínio e da distorção de suas vidas pela polícia.
Michael - O presidente Clinton, enquanto líder do Partido Democrata, será prejudicado ou auxiliado em sua tentativa de se reeleger?
Norman - Acho que tudo isso não vai ajudar Clinton em nada. Com certeza dividiu dois de seus grupos de eleitores, os negros e as mulheres.
Os grupos de mulheres vão sentir que os negros não se importam com o fato de Nicole ter sido brutalmente assassinada.
O pai de Ron Goldman (amigo de Nicole, mulher de O.J., morto com ela), não importa o quanto esteja sofrendo, certamente parece estar determinado a desencadear uma guerra entre negros e brancos. Quando ele disse que "hoje não foi a promotoria quem perdeu, foram os EUA", ele fez um chamado aberto ao antagonismo racial.
Michael - O que você diz de Johnny Cochran (principal advogado de O.J.) trazer homens da Nação do Islã para serem seus guarda-costas?
Norman - Antes de tudo isto terminar, O.J. os terá envolvido na história também. O triste fato é que uma celebridade negra que sente que sua vida corre perigo não pode buscar melhor segurança do que com os homens de Louis Farrakhan (líder do grupo negro Nação do Islã, que organizou uma marcha em Washington na segunda-feira passada).
Michael - Os americanos estão tão mergulhados em sua necessidade de telenovela que outro dia, na televisão, um psicólogo dava conselhos às pessoas sobre os sintomas de privação que provavelmente seriam induzidos pelo fim do julgamento. Que conselho você daria?
Norman - Telenovelas para preencher o vazio! Tudo isso faz parte da doença espiritual. O mundo está sofrendo não apenas dos danos ecológicos à natureza, mas também de má ecologia espiritual. E especialmente nos EUA.
Michael - Má ecologia espiritual? É melhor você explicar isso.
Norman - Comecemos com o assassinato de JFK. Depois houve dois outros assassinatos terríveis, Martin Luther King e Bobby Kennedy, tudo isso permeado pelo Vietnã. A seguir, Watergate. Depois os anos durante os quais Ronald Reagan e George Bush triplicaram a dívida nacional para poderem combater o "Império do Mal".
Os brancos podem enxergar esses acontecimentos sob várias óticas, mas, desde um ponto de vista negro, pode haver um consenso maior. Pois os negros podem se enxergar como habitantes a contragosto de um país poderoso, vaidoso, com tendências imperialistas, que está dando um tiro em seu próprio pé. Só que esses pés são deles, os negros.
Michael - Mas como isso cria uma relação entre a Guerra Fria e o caso O.J. Simpson?
Norman - (ri) Ambos se enquadram na categoria de má ecologia espiritual. Durante 40 anos fomos levados a pensar nos russos como sendo materialistas, descrentes em Deus, um "Império do Mal". Quando a Guerra Fria terminou, descobrimos de repente que a Rússia era um país pobre, terceiro-mundista.
Os russos não estavam equipados para dominar o mundo. Na verdade, estavam apenas tentando melhor seu miserável padrão de vida opressiva e não conseguiam fazê-lo. Tinham sido obrigados a gastar demais com a corrida armamentista. Não vencemos a Guerra Fria -levamos os russos à falência. Na realidade, era um grande banco exaurindo as reservas de um banco menor.
As pessoas aqui nos EUA não necessariamente raciocinaram assim, não seguiram essa lógica toda. Mas a sentiram. Foi como se durante 40 anos todos nós tivéssemos sido limalhas magnéticas, todas alinhadas na mesma direção. Ali estávamos nós, unidos contra o "Império do Mal". Agora é como se uma grande alavanca tivesse sido acionada. O campo magnético deixou de existir. Todas as limalhas estão livres para se dispersarem ao léu. Já não temos um inimigo externo para odiar. Mas ainda temos 40 anos de ódio e medo erguidos para combater um "Império do Mal" que não existe mais.
Então todo mundo nos EUA está repleto de ódio aleatório, que aparece na superfície ao menor toque, contra praticamente todas as outras pessoas nos EUA. E isso tem sido o pano de fundo deste caso. Ele nos uniu como nada mais conseguiu fazer desde a Guerra Fria. Voltamos a fazer parte de um campo magnético.

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