São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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perdidos no espaço racial

MARILENE FELINTO

Se O. J. Simpson matou ou não a mulher é questão irrelevante desde o início. O julgamento de Simpson terminou no dia em que começou. Réu nenhum poderia ser julgado com imparcialidade depois do show de variedades em que se transformou o caso do ex-jogador de futebol americano -na cadeira de réu sentaram-se, na verdade, a sociedade e o sistema judiciário americanos.
O estrago feito pela publicidade em torno do julgamento já não se podia mais remendar. A questão racial é secundária, portanto, olhando sob esse ponto de vista: independentemente da raça dos envolvidos no crime, o julgamento era inviável, pedia anulação. Mas é claro que o casal inter-racial é a ponta que enrasca o nó desse intrincado (mais um) crime que não ata nem desata.
Fosse nos anos 50, quando negros eram proibidos de constituir júri nos Estados Unidos, Simpson já estaria a essa hora condenado e enforcado. Centenas de cidadãos americanos negros foram sentenciados à morte por júris brancos racistas. Difícil acreditar que o mesmo não teria acontecido hoje se o júri de Simpson fosse branco. Em resumo, e em tempos de justa reparação, o júri tinha que ser negro e Simpson tinha que ser absolvido -se não pela precariedade das provas, pelo simples fato de que não se julga um homem naquelas condições de estardalhaço.
Entretanto, o julgamento de Simpson não terminou, vai continuar história adentro. Não bastasse a cobertura racista da imprensa durante todo o episódio do julgamento, Simpson vai enfrentar para sempre o ódio dos brancos, a perseguição das feministas e o deboche dos próprios negros, como o filho pródigo.
Da cobertura da imprensa, basta citar, no Brasil, o caso da Folha, que estampava títulos racistas como "símbolo negro quis ser branco", para tecer avaliações levianas sobre o fato de O. J. ter se casado com uma branca e falar a linguagem culta oficial da televisão americana, a linguagem da grana, ao invés do jargão negro das favelas onde nasceu.
Afora o fato de que as pessoas não deviam ser julgadas pela raça dos parceiros que escolhem, o primeiro casamento de O. J. foi com uma negra. Além disso, Spike Lee, Collin Powell ou Oprah Winfrei -para citar apenas alguns negros americanos de destaque- falam a mesma linguagem do presidente branco dos Estados Unidos e nem por isso são acusados de desejarem ser brancos. O que há de mais detestável no racismo brasileiro -e na sua contrapartida, os movimentos negros- é o que ele importa do americano.
Erros de avaliação como esse movem também a conduta equivocada das feministas, para quem a absolvição de Simpson é maléfica porque, como dizia a conclusão "feminista" da matéria da Folha, "as vítimas de violência doméstica podem se sentir abandonadas com o veredicto". Como sempre perdidas no espaço -verdadeiras replicantes do Dr. Smith, o personagem trapalhão e perverso da série americana de TV dos anos 70-, as feministas confundem sutiãs com julgamentos.
Não se discutia se O. J. Simpson é um grosso que espancava a mulher. Se espancava, que tivesse sido condenado na ocasião das ocorrências policiais registradas pela própria Nicole Simpson. O crime de hoje é outro: é o nosso, o da justiça de homens defeituosos que julgam homens defeituosos, em nome da quimera da perfeição e do acerto.

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