São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Novela reforça preconceito contra a mulher

LÚCIA CRISTINA DE BARROS
DA REVISTA DA FOLHA

"A Próxima Vítima" chegou cheia de promessas: inovadora, a novela mostrou uma família negra de classe média e um casal de gays. Ótimo.
Pena que com relação às mulheres não só não tenha avançado um milímetro contra o tão arraigado machismo nacional -mas ao contrário, tenha reforçado as piores atitudes e preconceitos.
Na mesma semana em que a Folha publicava os crescentes registros da violência contra a mulher no Estado de São Paulo (só os espancamentos aumentaram 18%), a Rede Globo mostrava um retrato daqueles números.
Na cena que foi ao ar no dia 27 de setembro, Isabela (Claudia Ohana) está mantendo relações sexuais com seu amante.
O ma rido, Marcelo (José Wilker), chega e começa a agredi-la com uma faca, cortando-a em várias partes do corpo e desfigurando seu rosto. Ele não mata a mulher porque a tia dela aparece.
Em outra cena, Zé Bolacha (Lima Duarte) lembra que seu filho é um homem civilizado -ao que Marcelo responde que é "um homem traído. Entenda-se: homens traídos têm permissão para virarem agressores e assassinos.
Ainda em um terceiro momento, Marcelo reúne os filhos para explicar o que aconteceu. Sua única filha responde: "Não precisa explicar, a Isabela merecia".
A mulher que "merece" ser agredida e até assassinada por seu companheiro não é uma espécie rara no Brasil ou no mundo.
O marido que bate e lava com sangue um problema doméstico também não é um animal em extinção e encontra-se em todas as camadas sociais -lembre-se do caso do milionário O. J. Simpson, que espancava a mulher, Nicole.
A questão da violência doméstica é só a face mais trágica de um problema amplo: o preconceito contra a mulher.
Em 1989, o então presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Mario Amato, declarava que a ministra Dorothea Werneck era "inteligente, apesar de ser mulher".
No começo deste mês, o secretário municipal dos Negócios Jurídicos, Francis Selwyn Davis, afirmou acreditar que o homem possa defender o seu vício de fumar, mas não "as moças".
Afinal, entre outras coisas, se a cinza cai e as mulheres estão dirigindo, elas "provocam um desastre", pois "não sabem se batem a cinza ou dirigem".
Em 1988, o então senador Roberto Campos opinava nesta Folha sobre o artigo constitucional que prevê que o Estado assegure assistência à família e crie mecanismos para coibir a violência doméstica.
Para ele, tal norma constituía uma "violação aos direitos humanos", já que "as mulheres gostam de apanhar. Pelo menos as normais".
A evidente ironia, nesse caso, reforça o preconceito.
A misoginia travestida de normalidade, diluída nas relações cotidianas, na fala da personagem Ana (Suzana Vieira), quando diz a Juca (Tony Ramos) que ele pode ser um bom marido, mas é homem, e que, apesar dela confiar nele, ela não confia em sua rival. Tradução: o homem trai porque é parte de sua natureza, mas a culpa não é dele e sim da mulher que vira a sua cabeça.
Tantos preconceitos, tão repetidos, tornam-se verdades. Fica até difícil reconhecê-los.
Está certo, na trama Isabela é uma vilã e uma assassina (e por isso é fácil achar merecido o que aconteceu a ela).
Sua única punição, porém, foi por ter traído. Mais: foi por ter tido em seu amante um interesse puramente sexual. Seu oposto na novela é Ana, personagem que foi por anos a "outra na vida de Marcelo -mas cuja face maternal atrai simpatia e até desculpa.
Seria ótimo que uma novela se dispusesse a discutir o preconceito contra a mulher e a questão correlata da violência doméstica -de forma responsável. Mas esta história, a Globo fica devendo à sociedade como um todo e, principalmente, ao grande público de suas tramas: as mulheres.

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