São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 1995
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Tolerância, tolerância, abre asas sobre nós

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em Minas se diz: é louco mas não rasga dinheiro. O pastor Sérgio Von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, criou uma nova possibilidade: ser crente sem chutar a santa.
Vi tantas vezes sua perfomance e, não sei se por ser uma pessoa verbal, as frases me impressionaram mais que os chutes. Principalmente quando exclama zangado: "Isto não funciona".
Ele se apóia desapontado na imagem, como se fosse a máquina de Coca-Cola que engoliu a moeda e se recusa a retribuir o cliente com o líquido escuro e espumoso.
O que é funcionar? Na Índia, milhares de pessoas deram leite à estátua de Shiva. E ela bebeu. Mas Shiva tem uma história que não se compara à de Nossa Senhora Aparecida. É o único deus que conseguiu combinar espiritualidade e satisfação sexual, ascese e prazer.
Quando vi Von Helder chutando a santa, pensei que a guerra estava começando e saí em busca de um velho exemplar da revista "Autrément", dedicado à tolerância. Mas os tempos andam tão duros que no lugar onde deveria estar a revista encontrei uma velha edição da Flammarion do diálogo de Konrad Lorenz e Karl Popper. Título: "O Futuro é Aberto".
O que fazer, diante de uma guerra religiosa, com o diálogo, às vezes meio maluco, de dois octogenários que se dedicaram à filosofia e à sociobiologia?
Lorenz: "Deus é um ator que recita o que lhe foi escrito por Friedrich Schiller, ou bem é um poeta que participa do jogo a sua própria imaginação?... Os demônios são assim, sabem de coisas que não podemos saber."
Popper: "Os seres vivos destituídos de iniciativa devem disputar os nichos ecológicos ocupados por aqueles que, ao contrário, exercem seu espírito de iniciativa, têm à sua disposição os nichos ecológicos que eles inventam."
Durante muito tempo, Popper e Lorenz dormiram na estante. Pensadores de direita, sofreram minha intolerância ideológica e eis que ressurgem, risonhos e triunfantes, no momento em que vejo Von Helder chutar a santa e alguns adversários chutarem Von Helder -enfim, em vez do massacre das torcidas de futebol sumir na fumaça do mundo religioso, os pontapés se transplantam para a própria vida espiritual.
Popper: "Todo indivíduo que se mete em política devia estar consciente de duas coisas: deve endossar uma enorme responsabilidade intelectual e deve estar consciente de que pode causar danos, deve pensar que não sabe nada e deve aprender a se manter de espírito aberto, a não dar a impressão de que sabe quando, de fato, não sabe nada. Deve praticar sua autocrítica e estar sempre pronto a melhorar suas teorias sobre o Estado e a sociedade. A detenção do poder político é um absurdo. Adultos não precisam de dirigentes."
Os velhinhos que sempre passaram por reacionários, na verdade, estavam lá pensando, buscando o diálogo.
Mas o que têm entre si Popper, Lorenz e Von Helder, além do sobrenome germânico?
Popper: "Sou trialista e não dualista. Existe o corpo, o espírito e a linguagem."
Von Helder: "Como é que Deus pode ser confundido com essa coisa feia?"
Nessa segunda frase, uma nova revelação: Deus não está no feio, muito menos em toda parte -seu único pouso terrestre é o belo e o funcional. Na minha cabeça os elementos se fundiram subitamente: Von Helder chuta a santa mas não rasga dinheiro. Sua trajetória espiritual está marcada pelo cálculo pragmático. Se a santa fosse feia, mas funcionasse, pelo menos estaria no limiar do divino. Destituída dos dois atributos, beleza e funcionalidade, não pode jamais aspirar ao divino, tem de rastejar pela grama à espera de um chute, tem de rolar na marca do pênalti à mercê de um pontapé redentor.
Imagino um espírito estético pragmático diante da estátua do Buda. Quem é esse cara? Por que senta-se desse jeito? Por que não o chutamos para a linha de fundo?
Na Índia explodem guerras religiosas, no Japão uma seita é desmantelada pela polícia, no Texas voa tudo pelos ares. Algumas coisas deveriam ser aprendidas nesses tumultos. Uma delas é: não encurralar seitas baseadas em fortes condicionamentos mentais.
Nelas, o aprendizado não se faz pela aventura e descoberta, como propõe Popper, mas pela repetição mecânica que nos permite "esquecer" o que aprendemos, recalcando-o no inconsciente.
Levadas ao limite da tensão, as seitas chegam à tragédia coletiva. Quando se encerram no pragmatismo para consolidar seu império material, acabam dando chutes nos santos dos outros.
Sem reduzir a responsabilidade individual de Von Helder, é preciso admitir que não há chute isolado. A sociedade brasileira, de uma certa forma, levantou essa bola. Da minha parte, ao constatar que perdi o volume da tolerância, aproveitei para ler dois proscritos pela esquerda.
Von Helder, dom Helder, Mancha Verde, Gaviões, sem-terra, fazendeiros, burgueses e proletários -uni-vos é pedir demais, mas tolerem-se uns aos outros. Estamos precisados.

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