São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 1995
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O Brasil e a esfinge

RICARDO SEITENFUS

A continuidade entre o governo de FHC e o de Itamar Franco excede o fato de um ter sido chanceler e ministro da Fazenda do outro. A implantação do Plano Real, as alianças políticas e o perfil geral do ministério o demonstram. Mas é possível afirmar-se o mesmo quanto aos temas externos?
Primeiro surgiram as declarações sobre os direitos humanos. Depois a tomada de posição sobre a reforma do Conselho de Segurança (CS) da ONU.
Finalmente, a deflagração de uma campanha de combate à prostituição e ao trabalho infantil. São momentos que insinuam uma guinada na política externa brasileira. Porém, talvez pelo desolador cenário interno com o qual nos defrontamos, não há como escapar à questão: o novo discurso representa uma ruptura? Operará mudanças efetivas?
Quanto à primeira parte, há a evidente mudança da figura presidencial. O poder natural, ao melhor estilo presidencialista, é reforçado pela qualificação, o gosto e a propensão pessoal do atual presidente pelos assuntos externos. Lamentavelmente, ao contrário do sistema americano, no qual o Congresso, os partidos políticos e a opinião pública exercem atenta vigilância, a prática brasileira demonstra que inexiste contrapeso à ação externa do Executivo.
Passando a tratar do conteúdo da política externa de FHC, seria pertinente refletir sobre alguns pontos:
1) Acostumado a negar suas chagas diante do exterior, o Brasil, antes de dirimir parte inaceitável de seus problemas, sempre reivindicou um status diferenciado no cenário mundial. Preocupado em atrair investimentos e fomentar os negócios da iniciativa privada, o país tem lutado para melhorar artificialmente a imagem do país no exterior.
No governo Itamar criou-se inclusive um fundo de propaganda para essa finalidade. Mas aceitar a discussão sobre a violação de direitos humanos no Brasil, reunir-se com as ONGs, admitir a gravidade dos índices de prostituição e de trabalho infantis em território nacional certamente representam uma alteração positiva da sofrível política de prestígio.
2) Posta a mudança, resta saber se o recém-lançado combate ao trabalho e à prostituição infantis contempla programa, orçamento e responsabilidades à altura do desafio a que se propõe. A mera transferência à alçada da sociedade civil não isentará o país de graves acusações, como no caso do "dumping" social, estigma do qual o Brasil defende-se só com o argumento, não-comprovado, de que acatamos as normas da OIT.
3) De regra o Itamaraty, ao planejar e executar a ação externa, tinha de convencer o Palácio do Planalto sobre a importância desse trabalho. Com FHC a iniciativa de atuação internacional troca de endereço: a Casa de Rio Branco parece mesmo coadjuvar, com apoio logístico, as ações presidenciais.
O Ministério das Relações Exteriores é, a um só tempo, prestigiado em sua ação, mas também suplantado pelo poder presidencial. Daí decorrem alguns ruídos, como a questão do CS da ONU. Formulou-se um discurso oficial que privilegia a reforma do CS, não necessariamente a participação brasileira.
Ora, com uma peregrinação internacional significativa o chanceler Lampreia trabalha por uma vaga para o Brasil. Mas é o presidente que assume, em marcante entrevista sobre política externa, a pergunta fundamental: "O Brasil está disposto a participar mais efetivamente e arcar com os custos?". Certamente os militares brasileiros, em busca de novas funções, sentem-se atraídos pela possibilidade de participar de ações de paz da ONU, consequência direta de nossa eventual ascensão ao CS. Mas essa é a aspiração da sociedade brasileira?
4) O governo federal privilegia de fato o interesse público? No caso da ONU impõe-se uma reforma geral do funcionamento daquele organismo. Não se trata apenas da falta de representatividade do CS, mas das disfunções, o excesso de gastos e a ineficiência do conjunto da ONU. Preocupando-se somente com a reforma do CS o Brasil dá a impressão de que advoga em causa própria.
5) O acatamento do óbvio não tem sido um fácil exercício para os responsáveis por nossa política externa. Daí decorrem estéreis debates sobre rumos, preferências e melhores parceiros, como se possível fosse moldar o posicionamento internacional por princípios maniqueístas.
Reconhecendo que as características e a dimensão dos desafios descartam qualquer reducionismo, o governo trilha o caminho do bom senso, indispensável para que alcancemos um espaço no sistema internacional condizente com nossas potencialidades e aspirações. Assim deve ser entendida a diplomacia multifacetária com parceiros importantes, sem automatismos ou alinhamentos.
6) Mas o governo federal é contraditório, pois ao mesmo tempo em que advoga a diplomacia multifacetária toma unilateralmente medidas que contrariam acordos assinados antes. O episódio da imposição unilateral de cotas para a importação de veículos, ao contrariar claramente os acordos de Ouro Preto e as regras da Organização Mundial de Comércio, desgastaram-nos inutilmente.
7) Vítima também das oscilações e provavelmente o maior indicador de continuísmo entre os últimos governos está o Mercosul. Em que pesem o desequilíbrio e as susceptibilidades entre os parceiros, nos últimos dez anos conseguiu-se reverter a natureza do relacionamento com a Argentina. Mas o processo dá evidentes sinais de esvaziamento. Urge revigorar o Mercosul, consolidando o que já foi alcançado e criando um novo cronograma de desafios.
Sobre essas questões de fundo a atitude presidencial deverá ser avaliada. Só sua capacidade de transformar intenções em prática, de não ser traído pelas suas próprias palavras, de identificar os dilemas da política externa e agir para superá-los, de buscar -acima dos interesses particulares nacionais e estrangeiros- o interesse público promoverá o encontro entre a aparência e a realidade.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 47, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra (Suíça), é coordenador do mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor de "Uma História Diplomática do Brasil" (ed. Civilização Brasileira, 1995), entre outros livros.

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