São Paulo, terça-feira, 24 de outubro de 1995
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Securitização: solução para quem?

ALCIDES MODESTO

O acordo firmado entre o governo e parlamentares ruralistas acerca da aplicação do instrumento de securitização das dívidas relativas ao crédito rural vem sendo objeto de grande polêmica na imprensa nacional.
A polêmica gira em torno de dois aspectos centrais. O primeiro relacionado à reincidência no caso do presente acordo dos períodos nos quais as propostas dos ruralistas costumam ser acatadas pelo governo, coincidindo sempre com os momentos decisivos da sorte do programa de reformas neoliberais da Constituição promovido pelo governo.
A exemplo do acordo anterior, fechado às vésperas da votação da PEC do Petróleo pela Câmara, o presente acordo foi selado quando a maioria dos membros da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara resiste à admissibilidade dos absurdos jurídicos constantes na proposta de reforma administrativa.
Seria no mínimo uma grande injustiça assegurar, com base apenas nessas coincidências (?), que alguns desses parlamentares vêm condicionando suas posições no Congresso às contrapartidas oferecidas pelo governo. Mas que este vem dando provas de sua disposição franciscana às avessas, isso vem!
Fundamentalmente importa, neste artigo, abordar a forma com que o governo negocia e define medidas dessa natureza que impactam sobre o conjunto da sociedade e -decorrente dessa forma- avaliar a qualidade do conteúdo do acordo.
Não poderia silenciar sobre o caráter autoritário e seletivo que tem revestido a definição das medidas supostamente favorecedoras da recuperação econômica da atividade agrícola. O governo FHC teima em ignorar o amplo mosaico social que caracteriza a agricultura brasileira ao eleger como seus interlocutores preferenciais na determinação das políticas setoriais um seleto grupo político de perfil nitidamente conservador que, indevidamente, se avoca a condição de porta-voz do conjunto dos interesses do setor.
Enquanto isso os segmentos com maior dimensão social da agricultura (os de base familiar, em especial), ignorados ou pouco considerados pelo governo, são reduzidos ao limbo da política assistencialista oficial do programa Comunidade Solidária (ver proposta do PPA 1996/99).
Quanto ao mérito do acordo pela securitização, devo dizer preliminarmente que o próprio fato de sua celebração já denuncia que a bancada ruralista não sabe o que pretende para a agricultura e o governo, por sua vez, não sabe o que fazer com o setor. Isso porque há apenas quatro meses ambas as partes consensuaram festivamente sobre as regras para a renegociação das dívidas dos agricultores (Res. Bacen 2.164/95).
Com o acordo atual, seus signatários conseguem a proeza de gestar um instrumento potencialmente lesivo aos agricultores -e, portanto, à agricultura- e efetivamente lesivo à população. Os únicos beneficiários reais da medida serão os bancos.
Convém esclarecer que, grosseiramente, a securitização nada mais é do que uma nomenclatura pomposa para um ato de avaliação pelo Tesouro (contribuinte) da renegociação, em prazos alongados, das dívidas de contratos de crédito rural mediante a garantia aos bancos fornecida pela emissão de títulos do Tesouro.
A base dos novos contratos será a equivalência-produto via preço mínimo mais juros anuais de 3% sem qualquer diferenciação entre categorias de produtores, ou seja, a confirmação da concepção da agricultura como um monopólio: um miniprodutor terá os mesmos encargos que um deputado-produtor.
Por que os agricultores deverão ser punidos com essa proposta?: 1) porque o instrumento será aplicado indistintamente sobre o montante da dívida, o que inclui suas frações de legitimidade questionáveis ou ilegítimas mesmo, como no caso daquelas resultantes do sobreendividamento provocado pelo descasamento de índices ocorrido no Plano Collor e pela capitalização mensal das taxas de juros, por exemplo.
Significa que o acordo, agindo em sentido contrário às recomendações da CPMI do Endividamento Agrícola, levará os agricultores a pagarem as parcelas das dívidas resultantes de atos governamentais ilegítimos e confiscatórios que, no mínimo, mereceriam outro tratamento.
2) os contratos de refinanciamento das dívidas deverão ser firmados com os preços mínimos em níveis reais dentre os mais baixos da história da PGPM. Como estarão nos momentos de liquidação dos contratos? Não houve qualquer salvaguarda para as inevitáveis flutuações positivas futuras dos preços, o que certamente resultará em perdas significativas para o produtor. Tecnicamente cometeu-se um erro crasso e politicamente tratou-se de uma aposta cega no êxito supremo do processo de estabilização o que, subjacentemente, estimulará a manutenção da agricultura como a principal âncora do Plano Real.
A população vai pagar uma alta fatura e somente os bancos vão lucrar. Por quê?: 1) os casos de inadimplência serão cobertos pelo Tesouro (contribuinte). Não nos surpreendamos se a securitização vier a constituir-se em instrumento de massiva anistia branca, o que demandará, parcial ou totalmente, R$ 7 bilhões dos bolsos dos contribuintes a serem apropriados pelos bancos, os quais, a propósito, já não alimentavam esperanças de recuperar grande parte desses créditos.
2) A depender do comportamento de uma série de variáveis como evolução dos preços mínimos e dos juros de mercado e ainda dos níveis de inadimplência, a maior fatura que a sociedade poderá pagar com a securitização virá da cobertura da equalização.
Suponhamos que esse acordo estivesse em prática há um ano. Nesse período os preços mínimos não variaram na média e os juros de mercado ficaram em torno de 35%. Nessa simulação, somente a título de equalização, o Tesouro (contribuinte) pagaria aos bancos, neste primeiro ano da securitização, algo em torno de R$ 2,4 bilhões.
Portanto trata-se de um negócio da China para os bancos, desfavorável para os agricultores e desastroso para o Tesouro (contribuinte).

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