São Paulo, terça-feira, 24 de outubro de 1995
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Reforma agrária e invasões

ROBERTO RODRIGUES

As sucessivas invasões de terra organizadas nos últimos meses recolocam em foco as questões agrícola e agrária do Brasil. Vale a pena clarear alguns pontos a elas referentes.
1) O governo FHC tem o compromisso de assentar 40 mil famílias em 1995, programa esse que vem sendo cumprido pelo Incra. Com todas as dificuldades burocráticas e financeiras conhecidas.
2) A política econômica foi tão perversa para o campo em 1995 (juros insuportáveis, câmbio defasado e preços aviltados dos produtos agrícolas) que possivelmente mais de 40 mil famílias de proprietários rurais, especialmente pequenos, tenham sido obrigadas a deixar a atividade.
Aí está um contra-senso que é preciso sublinhar: enquanto a sociedade toda está pagando a reforma agrária, assentando as 40 mil famílias, o desastre financeiro da agricultura joga à mesma sociedade o ônus de criar condições de infra-estrutura urbana para os desassentados. Assim estamos pagando duas vezes pelo mesmo assunto. E corremos o risco de pagar de novo porque não adianta nada dar terra para alguém sem oferecer os demais fatores de produção: crédito, tecnologia, seguro, treinamento, organização etc.
Ora, esses são instrumentos de política agrícola, cujo sucateamento foi responsável pela brutal perda de renda do setor rural nos últimos anos. Se agricultores que já tinham terra não sobreviveram, como farão os novos? Serão novos deserdados, isso sim! A reforma agrária precisa ser compreendida como um instrumento de política agrícola e não como algo maior que esta.
3) Há uma velha falácia segundo a qual a reforma agrária baratearia o custo dos alimentos básicos porque estes seriam produzidos pelos pequenos produtores. Pura desinformação: em primeiro lugar, os baixos preços desses produtos desestimulam seu cultivo, a mesma razão que provoca a grande "débâcle" de renda entre os pequenos produtores.
E, em segundo lugar, não existe uma política oficial de produção de alimentos com preços mínimos, seguros e até investimentos em pesquisa, inibindo, de novo, sua produção. Ninguém planta por poesia: os agricultores modernos de qualquer país trabalham para ter resultados econômicos positivos, qualquer que seja o tamanho de sua produção.
Outra falácia é que a reforma agrária reduziria o êxodo rural. É inocência! Em qualquer lugar do planeta as famílias migram para as cidades em busca de mais conforto. É uma tendência irreversível. Para reduzi-la seria preciso urbanizar o campo com saúde, escolas e lazer. Para isso é preciso política agrícola que garanta renda aos produtores.
4) A reforma agrária precisa ser feita com seriedade:
- se quisermos tratá-la sob o prisma econômico, basta fazê-la junto com adequada política agrícola;
- se quisermos tratá-la sob o prisma social, basta ter em conta que vamos pagar por isso o equivalente a R$ 40 mil por família assentada, segundo o Incra.
Mas a reforma agrária tem de ser feita sob o império da lei, resguardando o estado de Direito. Isso significa o respeito à Constituição ou, em outras palavras, propriedades produtivas não podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária. Aqui existe um ardil: pessoas de má-fé confundem o leigo afirmando que propriedade improdutiva -passível de desapropriação- é a terra incapaz de produzir por ser estéril. É falso: propriedade improdutiva é aquela que, sendo apta, não está produzindo.
5) Por outro lado é preciso explicitar com clareza dois conceitos muito confundidos: existe o produtor rural e o proprietário rural cuja terra é reserva de valor. São duas figuras totalmente diferentes.
O primeiro, o produtor rural, é o profissional da agricultura, aquele que vive da atividade agropecuária, malgrados todos os seus percalços. Precisa ser protegido mesmo quando não consegue produzir em função dos problemas decorrentes do crédito rural, preço mínimo, adversidades de clima ou de mercado.
O segundo é um especulador, hoje bastante desapontado com a queda do valor da terra, que investiu na compra de fazendas para ampliar seu patrimônio e que, negociando-as à frente, ganha dinheiro. Esse tem de ser tratado diferentemente do primeiro, embora também sob as leis vigentes, inclusive na vertente tributária (ITR progressivo).
6) Por último vale falar das invasões que, por incrível que pareça, são suavizadas com o apelido de "ocupações". Essas são uma afronta ao estado de Direito, ao direito de propriedade consagrado na Constituição. Não colocam em risco a propriedade rural apenas, mas são uma violência, agressão ostensiva à paz social e ao poder constituído. São fator de insegurança, desassossego e, por que não dizer, medo.
Amanhã o exemplo bem-sucedido dos invasores -cuja ação ilegal não é contestada à altura pelos governos estaduais e federal- levará à criação dos sem-banco, sem-supermercado, sem-cinema, sem-indústria e sem-teto. E a invasão gratuita, com consequências impensáveis, poderá ocorrer em casas de pacatas famílias urbanas que se deixaram enganar na questão da reforma agrária.

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