São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 1995
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Powell é mestre do etéreo e do indizível

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Já termina amanhã a mostra Michael Powell-Emeric Pressburger, com a repetição de "Nas Sombras da Noite", languiano thriller de espionagem, estrelado pela mesma dupla (Conrad Veidt-Flora Hobson) de "The Spy in Black" (1939), que, salvo engano, foi exibido pela primeira vez no Brasil anteontem.
No programa de hoje, mais uma repetição -o aventuresco "Ó Pimpinela Escarlate" (1950)-, acrescida de outro inédito, "The Small Back Room" (1949), drama de guerra centrado nos dissabores de um expert em munições fragilizado pelo alcoolismo, e da segunda incursão da dupla ao mundo da fantasia musical, "Os Contos de Hoffman" (1951).
Há quem diga que a Inglaterra não produziu mais do que três ou quatro grandes diretores, todos já mortos. Michael Powell (1905-1990) seria um deles. Assino embaixo. Das duas estimativas.
Nos anos 60, quando quase todo mundo superestimava Tony Richardson e John Schlesinger, Powell desceu ao inferno do ostracismo anti-realista por convicção num cinema usualmente empenhado em dignificar o realismo, acabou descartado como um excêntrico decorador de fantasias.
Nem quando os britânicos "descobriram" o horror, nos anos 50, sua cotação em Londres melhorou.
"A Tortura do Medo" (Peeping Tom) só se consagrou como referência obrigatória do voyeurismo e do "grand guignol" fora da Inglaterra.
"Sapatinhos Vermelhos" não é apenas uma obra-prima do balé cinematográfico, mas também do cinema fantástico, que aliás enriqueceu com pelo menos outra criação sui generis: "Neste Mundo e No Outro" (A Matter of Life and Death, 1946), exibido ontem na mostra.
Afetado, esquisito, idiossincrático -costumam ser estes os adjetivos mais aplicados ao cinema de Powell. Contra e a favor. Sua reticência emocional também incomoda certos espectadores, inclusive alguns daqueles que admiram sua estranha maneira de evocar o erótico e o sobrenatural. Faço minhas as palavras de Raymond Durgnat: o cinema puro e antiliterário de Powell é para ser fruído exclusivamente durante a projeção. Não se leva nada de seus filmes para casa.
Raros cineastas conseguiram trabalhar tão fluidamente com o etéreo, com a força mágica dos elemento naturais, o indizível, o inexplicável, com a fantasia, enfim. "Narciso Negro" é mais que o relato elegante de uma alucinação nos confins do Himalaia, envolvendo um grupo de freiras com tesão recolhida, um agente britânico, um nobre hindu e uma misteriosa nativa. É um estudo delicado e sutil sobre a influência do vento, dos grandes espaços e da solidão no comportamento das pessoas.
Discípulo de Rex Ingram, assistente e co-roteirista de Hitchcock, Powell começou dirigindo filmes de baixo custo (23 entre 1931 e 1936), associando-se depois ao expatriado húngaro Emeric Pressburger (1902-1988), seu sócio e parceiro de criação na produtora Archers (onze filmes entre 1943 e 1956).
Aposentado em 1979, mandou-se para os EUA, onde virou professor, diretor emérito da American Zoetrope (de Francis Ford Coppola) e mestre de cabeceira de Martin Scorsese (que jura ter se inspirado na construção não-linear de "Coronel Blimp" ao estruturar o roteiro de "Touro Indomável").
A primeira parte de sua autobiografia, "A Life in Movies", saiu em 1986, mas a segunda, "Million Dollar Movie", só cinco anos depois de sua morte, editada pela viúva, a montadora Thelma Schoonmaker, e Scorsese.
Deixou também na orfandade um projeto cinematográfico, "The Earthsea Trilogy", escrito a quatro mãos com Ursula Le Guin. Apesar dos esforços de Scorsese e Coppola, não conseguiu viabilizá-lo por causa da idade.
Não há produtor que arrisque investir num diretor com mais de 80 anos. Ainda mais com alguém tão afetado, esquisito e idiossincrático como Powell.

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