São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Em busca do dinamismo da verdade

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Hoje filmamos, amanhã exibimos." Com este lema, Alexandre Medvekin (1900-1989), "o último bolchevique", e uma equipe de 31 pessoas cruzaram a União Soviética, em 1932, em três velhos vagões de trem convertidos em estúdio de cinema.
Foram seis expedições, 294 dias sobre rodas, 70 filmes, 91 bobinas, 24.565 metros montados e projetados, milhares de quilômetros percorridos, de Moscou a Dniepropetrovsk, daí a Krivoi Rog e aos colcoses (unidades agrícolas de produção coletiva) da Ucrânia e da Criméia.
A experiência (que agora inspira a idéia de uma espécie de "cine-trem" dentro do projeto Arte/Cidade, previsto para abril sobre os trilhos entre a estação Júlio Prestes e as antigas indústrias Matarazzo) já era por sua vez inspirada pelos trens de propaganda revolucionária que, em 1920, com a participação de grandes nomes da vanguarda russa, entre eles o jovem cineasta Dziga Vertov, partiam pelo interior da URSS com o objetivo de levar a nova arte à população de regiões distantes.
A diferença do "Kino-Trem" de 1932 era de princípio sobretudo político. Idealizado pelo Comissariado do Povo para os Transportes, dentro do espírito do Plano Quinquenal (desenvolvimento agrícola e industrial), visava otimizar a produção, exibindo aos camponeses os seus próprios erros e acertos por meio do cinema. "Ver-se a si mesmo (...) é sempre um acontecimento emocionante", dizia o próprio Medvekin.
A idéia inicial era educar, servir como um "promotor público", nas palavras do cineasta, que tomou a iniciativa do projeto abortado ao final de um ano: combater "os inimigos do comunismo", os ranços do antigo regime e da produção desorganizada. Os resultados foram, obviamente, outros.
A iniciativa não podia ser mais heróica. Um dos vagões foi transformado em laboratório, o outro em sala de montagem e projeção e o terceiro em habitação e refeitório. Cada um dos 32 membros da equipe tinha apenas um metro quadrado. Cheliakov, o homem do laboratório revelava 2.000 metros de filme por dia (para poder exibir no dia seguinte o que havia sido filmado na véspera). Havia atores, como Maslatsov e Sibiriak, que vinham da trupe do revolucionário Meyerhold. "Pensávamos que num submarino as pessoas tinham ainda menos espaço (...). Éramos jovens e românticos. Mas não havia espaço para um 33º, mesmo um romântico", disse Medvekin em um de seus depoimentos.
Era o início dos colcoses como forma de coletivização da agricultura soviética. O "Kino-Trem" partiu, submetido ao fluxo do tráfego ferroviário, na época das colheitas com o objetivo de filmar unidades de produção eficientes e ineficientes, comparar umas às outras, exibir umas às outras e incentivar a discussão por uma melhor produtividade. Mas o que acabou sendo filmado foram a miséria e as condições mais terríveis do campesinato, o contrário de uma iniciativa heróica e triunfalista.
A idéia era combater o "mal", mas, em vez de impor esse saneamento, ao mostrar o mal que encontravam nos próprios lugares, deparavam-se com o que o governo já não queria ver, com a "verdade" a que se referia Dziga Vertov com seu projeto documentário de cine-olho, uma verdade que não existe a priori, nos gabinetes de um Comissariado, mas apenas no contato, ao penetrar o mundo com a câmera, a partir do interior do movimento, no meio do turbilhão de todas as coisas.
Os trens e as imagens cinematográficas estiveram ligados de uma forma íntima, muitas vezes analógica, num vínculo de identidade que os confunde, desde "A Chegada do Trem...", dos irmãos Lumière, que marca o nascimento oficial do cinema, em 1895. "O que conta é que a câmera móvel é como o equivalente geral de todos os meios de locomoção que ela mostra e de que se serve", escreveu o filósofo francês Gilles Deleuze em seu "A Imagem-Movimento" (1983).
Em Vertov (1896-1954), o trem representa o movimento para dentro da verdade -uma verdade dinâmica, que só pode ser vislumbrada na soma de diferentes pontos de vista, justamente no vértice do movimento, através de um homem-câmera e de um cine-olho. O empreendimento heróico, utópico, de Vertov é fundir o homem às coisas e ao resto dos homens, à natureza, por meio da câmera. A montagem passa a estar dentro dos próprios planos nas relações e composições de forças e movimentos. Em Medvekin, por sua vez, a inspiração dessa primeira experiência heróica da câmera em movimento (e, por conseguinte, do cine-trem) se converte em algo bem mais desiludido e ambíguo.
"Com o tempo, o riso se tornou uma das armas principais do nosso trem", disse Medvekin, que já havia promovido um teatro político e satírico dentro do Exército Vermelho, do qual participou entre 1917 e 1927. A sátira, o riso e o humor sempre foram componentes marcantes do trabalho do cineasta, comparado por Eisenstein a um Chaplin bolchevique, após assistir a obra-prima de Medvekin, "A Felicidade" (1935).
Último filme mudo da URSS, "A Felicidade", que conta a história de um mujique (um camponês) que acredita tê-la encontrado, foi retirado de cartaz no mesmo ano de seu lançamento e desapareceu nos subterrâneos da cultura soviética (até ser "resgatado", na França, em 1971), assim como os filmes rodados durante os 294 dias do "Kino-Trem", redescobertos recentemente por um estudante de cinema em Moscou (a aventura e a descoberta estão documentadas no vídeo "Le Tombeau d'Alexandre", do francês Chris Marker, que será exibido este mês, assim como "A Felicidade", dentro do encontro preparatório para o Arte/Cidade).
Foi provavelmente essa estranha combinação entre humor e militância exemplar que fez de Medvekin um cineasta peculiar, sobretudo para o partido e os rumos tomados pela Revolução Soviética sob Stalin. E embora os filmes do "Kino-Trem" fossem apenas documentários, já estavam de alguma forma imantados pelo humor do cineasta, uma potência que irrompe no meio da miséria, impossibilitando a crença cega em qualquer tipo de teocracia.

CINEMA NOS TRENS
A mostra de filmes e vídeos do encontro, incluindo os documentários russos do "Kino-Trem", será apresentada a partir do dia 7/11 no Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, zona oeste de São Paulo). Horário e ingressos a definir. Maiores informações pelo tel. 011/230-0600

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