São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Trilhos que levam ao infinito

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Estação da dor, percorri todos /os teus caminhos.
Já não posso mais ir, não posso /mais partir.
Delonguei-me sob teus céus, /gritei sob tuas abóbadas.
Anseio pelo dia em que de ti /verei sair
A máscara sem olhos que rodará ao meu encontro
Sobre o entulho lívido em que à /sua busca rastejo,
Quando o comboio dos dias que /queima seus escombros
Cuspirá seu repasto de sombras /por sobre outras sombras
No estábulo de ferro em que /rumina a noite. (...)
Eu beijarei na sua boca /quadrada
A máscara ardente e dura em /que ficará a minha marca
No longo grito de adeus das /tuas portas fechadas"
Esse erotismo trágico e inesperado com que Léon-Paul Fargue contempla "A Estação" revela a ambivalência com que o tema dos nós e redes ferroviárias assinalou o nascimento da lírica moderna. De fato, no cenário da boemia parisiense do início do século, os dois grandes marcos fundadores da chamada poesia cubista cantavam a epopéia tecnológica dos comboios de aço e velocidade de cometas. Tratavam-se do poema "Zona, de Guillaume Apollinaire", e "A Prosa do Transiberiano e a Pequena Joana de França", de Blaise Cendrars. Ambos os poetas, como aliás era geral dentre a boemia de Paris, eram imigrantes, nômades, andarilhos, notívagos e viviam em viagens constantes. Se sua vocação era a poesia, seu impulso de vida os impelia para as ferrovias, projetando seus destinos no horizonte aberto.
A "Zona, de Apollinaire", se refere à Estação do Norte (Gare du Nord), o mais complexo entroncamento ferroviário do norte da Europa, com movimentação diária de enormes massas humanas, concentração de comércio popular e proliferação de hotéis baratos. Era também o ponto de chegada dos imigrantes das províncias e do exterior e o grande foco da baixa prostituição. A "Zona" era portanto o ponto dos que não têm lugar, dos que perderam as raízes, dos nômades do mercado e deserdados da vida. Num sentido, esse desprendimento total, essa plasticidade espacial, essa rapidez de deslocamentos proporcionada pelas redes ferroviárias, significava uma ampliação da liberdade em relação aos entraves da sociedade senhorial, hierárquica do século 19. Era sobretudo o que atraía os artistas boêmios.
Por outro lado, os desgarrados nesse grande circuito globalizado de alocação da mão-de-obra formavam a massa dos desqualificados destinados aos mais baixos salários, às tarefas mais brutas e à condição subumana de párias sociais. Suas errâncias pelos vagões superlotados, arrastando seus poucos trapos e bens, preconizam as tétricas cenas futuras dos comboios dos campos de concentração. O poeta boêmio está com eles, ele é um deles:
"Tu olhas com os olhos cheios /de lágrimas esses pobres /imigrantes
Eles crêem em Deus rezam /as mulheres amamentam crianças
Enchem com o seu cheiro o /saguão da estação Saint-Lazare
Têm fé na sua estrela como os /reis-magos
Esperam ganhar prata na /Argentina
E voltar a seus países depois de /fazer fortuna
Uma família transporta um /cobertor vermelho como você /carrega o seu coração (...)
Blaise Cendrars fugiu ainda adolescente de seu lar suíço para ir viver num vagão da ferrovia Transiberiana recém-inaugurada. Vivia de contrabandos e expedientes afins, até ser expulso por seu envolvimento com anarquistas russos. Atravessou toda a imensidão da Ásia até as profundezas da Sibéria, conviveu com as hordas de feridos e mutilados da guerra russo-japonesa, compreendeu como ninguém a relação entre a penetração continental das ferrovias e a dissolução das sociedades tribais e tradicionais, de pastores, camponeses e comunidades autônomas. Agarrado pela malha ferroviária, o mundo seria sugado de seus recursos humanos e naturais, dragados pelas estações centrais e seus nexos industriais. O prodígio tecnológico, paradoxalmente, ao invés de redimir concorre para a aflição geral:
"O mundo se estica, se alonga e /se contrai como um acordeão /atormentado por uma mão sádica
As locomotivas em fúria se /refugiam
Pelos rasgões do céu
E pelos buracos das nuvens
As rodas vertiginosas as bocas /as vozes
E os cães da miséria que ladram /aos nossos pés
Os demônios estão à solta
Ferragens
Tudo é um falso acorde
O broun-roum-roum das rodas
Choques
Sobressaltos
Nós somos uma tempestade sob /o crânio de um surdo..."
Fernando Pessoa conheceu ele também a perversa ironia desse efeito de aprisionamento pela ampliação colossal do espaço. "Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho dela", diz ele no seu poema "Véspera de Viagem."
O mesmo poema aliás, em que ele revela o estigma da obsolescência que recai agora sobre todos os que ficaram à margem dos grandes fluxos mundiais, da grande circulação planetária dos valores, dos sonhos e das vidas. Ser a partir deste momento é transitar e, se o enquadramento no circuito é aflitivo, pior ainda é a situação dos que restarem para fora dele. Dejetos inúteis que perderam o vagão da história, devendo se resignar na triste condição de,
"Ficar como um volume /rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de /passageiros do outro lado da linha
Ser encontrado pela guarda /casual depois da partida -
'E esta? Então não ouve um tipo /que deixou isto aqui?'"

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