São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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A inevitável presença do autor

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nietzsche, exultante de angústia, proclamou num dito famoso que Deus estava morto. Sejam quais forem as consequências da frase para a nossa conduta ética, o seu efeito literário teria, com certeza, surpreendido o autor Nietzsche. Pois seus discípulos franceses, Foucault acima de todos, desenvolveram esta proclamação nietzschiana até chegar ao dogma de que todos os autores (incluindo Deus) estão mortos.
A morte do autor -que não passa de mais uma figura de linguagem parisiense- hoje em dia é aceita como verdade literal pelos apóstolos do que poderíamos chamar de Nietzsche à francesa, para distingui-lo do Nietzsche meramente original. Também temos Freud à francesa, ou Lacan, que tem pouco a ver com as idéias de Sigmund Freud; e até Joyce à francesa -"Finnegans Wake" transformado em mais uma obra de Jacques Derrida. Mas nada disto se compara ao triunfo final da doutrina da morte do autor: Shakespeare à francesa. O delicioso absurdo nos foi ofertado pelo novo historicismo, que combina Foucault e as vitaminas da Califórnia para nos dar a boa nova de que foram "energias sociais", e não William Shakespeare, quem de fato escreveu "Hamlet" e "Rei Lear".
Eu às vezes me pergunto por que motivo há tão poucas obras-primas no oceano de biografias literárias, que se estende desde a grande "Vida de Samuel Johnson", por James Boswell, (1791) até o maravilhoso "Oscar Wilde", de Richard Ellmann (1988). A biografia é um gênero crucial, mas difícil. Até uma biografia inadequada, contudo, é sempre útil.
Há algo de vital em cada leitor autêntico de literatura que responde ao grito de batalha de Emerson, "não existe história: só biografia". Para além disto, há uma percepção mais profunda: não existe literatura, só autobiografia.
A literatura, segundo Freud, é uma regressão a serviço do ego. Pode ser difícil concordar com a sabedoria freudiana neste ponto, mas é uma idéia sugestiva. Ao ler, alguma coisa em nós fica repetindo as perguntas de Freud: do quê, ou de quem o autor está fugindo, e a que estado anterior de sua vida está voltando, e por quê?
O hábito da leitura, como passatempo ou arte, sofre muito no confronto com os meios visuais, especialmente a televisão, e talvez esteja fadado à extinção na era do computador, exceto que uma necessidade psíquica continue resistindo a tudo, presumivelmente porque ela pode mitigar uma forma central de solidão. A despeito de negações mais ou menos sofisticadas ou ressentidas, a leitura de obras literárias permanece sendo uma busca de superar o isolamento da consciência individual. Pode-se ler para ficar bem informado, ou por entretenimento, ou pelo amor da linguagem, mas, no fim, o que procuramos, no autor, é a pessoa que nunca encontramos, nem em nós mesmos, nem nos outros.
Nesta busca, há sempre elementos de uma vez só agressivos e defensivos, de modo que a leitura, mesmo na infância, quase nunca está livre de angústias. Lemos, então, por querer companhia, e cada autor pode se tornar o objeto do que há de mais idealista em nossa busca da inventividade e da inteligência. E lemos biografias não como um suplemento à leitura do autor, mas como uma segunda tentativa de compreender o que sempre nos escapa, que é o impulso de identificação com aquele autor.
Este impulso, embora recentemente contestado, é uma das bases da experiência do sublime na leitura. Os críticos não se cansam de dizer que não, mas há algo em nós que nos faz crer que entenderíamos Hamlet melhor se soubéssemos tanto sobre a vida de Shakespeare quanto sabemos sobre Goethe e Freud, Byron e Oscar Wilde ou, melhor do que todos, Samuel Johnson. O que não daríamos por uma detalhada e honesta "Vida de Dante" escrita por Petrarca, ou pelas "Memórias de Shakespeare" de Ben Jonson! Ou ainda, numa era mais próxima, por estudos de Hemingway sobre Scott Fitzgerald e de Scott Fitzgerald sobre Hemingway!; uma biografia de Shelley por suas três amantes; um Oscar Wilde por lorde Alfred Douglas: a lista é infinita. Rivais literários e amantes tiveram a chance de ver os autores de uma perspectiva que nunca será nossa.
Num certo sentido, a literatura não é outra coisa senão uma questão de perspectivas e a dificuldade de uma obra é proporcional à multiplicidade de vistas. A biografia literária interessa, então, como um estoque de perspectivas. Há relações entre a vida e a obra dos autores para as quais nossos instrumentos de análise ainda são grosseiros. Talvez um romance, um poema ou uma peça não sejam tanto regressões a serviço do ego quanto um amálgama de todos os mecanismos de defesa, trabalhando juntos para a apoteose do ego. Freud estimava a arte, mas não a ponto de pensar que fosse, como a religião e a filosofia, uma rival da psicanálise. Estava enganado. Ele mesmo pertence, hoje, à literatura, não à "ciência", e sua biografia tem com a psicanálise as mesmas relações que a biografia de Shakespeare com "Hamlet" e "Rei Lear" -se apenas soubéssemos mais sobre a vida do poeta inglês.
A literatura ocidental, especialmente após Shakespeare, está marcada pela representação de mudanças internas da identidade das personagens. Uma literatura da interioridade em contínua alteração já é, em si, uma forma de grande biografia, mesmo se esta for a biografia de seres imaginários, de Hamlet aos protagonistas sem nome de Kafka e Beckett. Um cético poderia argumentar que toda biografia literária diz respeito a um ser imaginário, já que os autores se constroem a si mesmos, e cada biógrafo nos dá uma criação que é sempre curiosamente diversa daquele mesmo autor visto pelos olhos de algum outro biógrafo. Ao contrário da "morte" do autor, a sua vida não é meramente uma ficção ou metáfora, por outro lado, é certo que contém elementos metafóricos ou fictícios. Tais elementos são parte do valor de uma biografia literária, mas não a maior, nem a mais importante, que é efetuar a separação entre a máscara e o homem ou mulher que está por trás.
James Joyce e Samuel Beckett, mestre e (temporariamente) discípulo, foram ambos personalidades enigmáticas e seus biógrafos ainda não conseguiram elucidar plenamente o mistério dessas naturezas opostas. Beckett parece ter chegado muito perto de um estado de santidade laica: desprovido de interesses pessoais, heróico nos tempos da resistência antinazista na França, o mais humano dos indivíduos que já escreveram grandes romances e peças. Já Joyce -cuja obsessão consigo mesmo era tão sobrenatural quanto a abnegação de Beckett- foi o Milton do século 20. Saber que Beckett foi talvez o menos egocêntrico de todos os autores pós-joyceanos, pós-proustianos e pós-kafkianos ilumina a natureza problemática de sua obra? Seja qual for a explicação particular neste caso, a pergunta permanece relevante.
A única morte do autor que difere da morte mesmo, e que tem importância, é o destino dos poetas fracos. O escritor forte que se integra ao cânone, não morre nunca, que é aliás o sentido real do cânone. Ser lido para sempre: é esta a vida do autor.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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