São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Extravios de um estilo impetuoso

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"O Matador", segundo romance da escritora paulista Patricia Melo, 33, garante um lugar de destaque para a autora entre os jovens ficcionistas que, na trilha aberta por Rubem Fonseca e, com variações, por Marcos Rey, concentram o seu trabalho na exposição crua e explosiva da violência urbana.
Chamá-la pura e simplesmente de herdeira de um ou outro dos autores mencionados, porém, seria inadequado. Desde o primeiro livro, "Acqua Toffana" (1994), Patricia mostra ter um projeto estilístico próprio e ousado, além de uma preocupação temática calcada firmemente nos "anos 90.
"O Matador" é o relato, em primeira pessoa, da evolução de um jovem chamado Máiquel no sentido de tornar-se um "justiceiro" suburbano agindo por conta própria ou por dinheiro. Ele vive amores desconcertantes, conhece o bem-bom dos ricos, mata, ironiza, tenta trabalhar "decentemente, delira, sonha, vê amigos sendo mortos. Quer se vingar do mundo.
Presentes já no primeiro livro, as principais características do estilo de Patricia -a objetividade, a economia de palavras, a capacidade cinematográfica de misturar em um mesmo período diálogos, descrições e vozes interiores- radicalizam-se, de modo positivo, neste segundo trabalho.
Leia este trecho de uma cena em que Máiquel está sendo contratado para executar mais um assassinato:
"Enfiei um punhado de pistache na boca, dei outro gole de uísque, nunca tinha comido pistache, gostei. Seis filhos da puta a menos, disse o fabricante de espuma, contando os cadáveres do álbum, oito, eu corrigi, tem dois que não estão aí, o Suel e o Ezequiel. Rimos. Pistache."
Patricia escreve para ser lida com rapidez. Constrói uma linguagem a serviço da falta de tempo. Investe no individualismo exacerbado, no fascínio pela morbidez, na valorização do ódio, na desideologização total. Capricha na figuração da violência gratuita e desregrada, no requinte e na voracidade dos atos homicidas.
Sua obra identifica, captura no ar e retrabalha, em um compasso que tende a ser transitório, as armas usadas por "forças externas" (TV, cinema, vídeo) cujos apologistas não cansam de decretar a morte da literatura, e o faz justamente para manter viva a chamada arte de Homero.
Por todas essas razões, seu trabalho é típico destes anos 90 -para o bem ou para o mal.
Há que se fazer um comentário, no entanto, na comparação entre "Acqua Toffana e "O Matador". Paradoxalmente, o progresso de ordem técnica e estilística observado neste último livro, conforme mencionado acima, vem acompanhado de uma regressão no enredo e na composição interna dos personagens.
Os narradores e coadjuvantes das duas histórias de "Acqua Toffana" são mais interessantes, mais originais na sua loucura, mais subjetivos nos seus estratagemas, entranham-se em nossas memórias de uma forma singular, só deles, o que Máiquel não consegue fazer.
Embora fortes e carregadas de energia, a figura do "justiceiro" e as de seus comparsas -uns traidores, outros não, como sempre- estão demasiadamente estereotipadas neste segundo livro de Patricia.
Em "O "assim, há um desequilíbrio negativo, inexistente na obra de estréia: o frescor e o vigor do verbo dão de longe na carne semipasteurizada dos personagens.

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