São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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A politização do espetáculo

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

A norte-americana Karen Finley ainda está nua, como entrou. Sentada numa cadeira no canto do palco do Sesc-Pompéia, na penumbra, ela é iluminada só pelo resto de luz refletida pelas projeções de slides de suas pinturas, em três grandes painéis. De repente, pifa a luz de um dos projetores.
O monólogo de "A Certain Level of Denial" (Um Certo Nível de Recusa) interrompe-se. De trás da platéia vem um técnico para trocar o bulbo. Finley comenta embaraçada, enquanto todos esperam: "Tomara que não haja nenhum crítico nesta noite". Era a última de suas apresentações no Festival Internacional de Artes Cênicas, em São Paulo. Aqui e ali, ela parava para chorar em meio a vários discursos de protesto social e desnudamento pessoal que compõem a obra.
Finley tornou-se conhecida em 1990, quando ocupou o centro de uma disputa com a entidade norte-americana denominada National Endowment for the Arts (Fundo Nacional para as Artes), o NEA, que se negou a financiar seu trabalho -em que lambuzava-se, nua, com chocolate e brotos de alfafa, enquanto recitava o verso livre "Mantemos Nossas Vítimas a Postos". Por trás da negação das verbas, estavam pressões do senador ultraconservador Jesse Helms (republicano da Carolina do Norte), as mesmas pressões que censuraram as exposições das fotos de homens nus e de instrumentos sadomasoquistas feitas por Robert Mapplethorpe e Andres Serrano.
Finley processou o NEA para reaver os fundos destinados ao espetáculo. Agora, quando o líder republicano na Câmara, Newt Gingrich, encabeça campanha pelo fechamento do NEA -fundado em 1965, com um orçamento de US$ 6 milhões para incentivar arte favorável à República-, Finley volta, como que vestida de nudez, para apresentar um espetáculo que trata de homofobia, esquerdistas e aborto. A ação resume-se a uma profusão de palavras que são ao mesmo tempo exercício de retórica, poesia e transe religioso.
Um certo desespero transparece na explicitude de seu discurso anticonservador. O teor claramente político de seu verso causa surpresa na audiência brasileira, que já se desacostumou a referências mais diretas nessa área, quando diante de um trabalho artístico.
É tão político o trabalho de Finley, que dele vem um questionamento da própria arte como tal. Pode-se ler seu panfleto teatral, inclusive com referências ao racismo presente no julgamento de O.J. Simpson, como um manifesto a respeito da existência de uma arte destinada a comemorar a vida, e de uma outra voltada para cultuar a morte; uma que privilegia valores raciais e nacionais, e outra que procura dissolver essas diferenças.
Protesto, confissão e busca do autoconhecimento caminham lado a lado na peça. Na verdade, tem-se a impressão de que o protesto é o caminho para a iluminação pessoal. Numa entrevista ao jornal "USA Today", em 1990, a performer atribuía a força de seu trabalho à origem modesta -o pai era vendedor de lavadoras. Ela cresceu em Evanston (perto de Chicago, no Estado de Illinois, na região centro-norte-oriental dos EUA) e se diz inspirada pelos discursos de Martin Luther King.
Chama a atenção o fato de que, nos Estados Unidos, principais vitoriosos da falência do comunismo, surja uma arte contestatória, forte e desafiadora, como reação a iniciativas conservadoras cada vez mais agressivas. É o caso de outro espetáculo encenado durante a temporada de verão em Nova York, sob a direção de Peter Sellars.
"I Was Looking At the Ceiling and Then I Saw the Sky" -com música do compositor John Adams e libreto da poeta, ensaísta e ativista política June Jordan- é um musical que se passa em Los Angeles, durante o terremoto de 1993.
Os personagens da peça são estranhos que se reúnem quando seu mundo, literalmente, cede sob seus pés. Atenção aos personagens: uma imigrante ilegal salvadorenha, seu marido negro (que é preso por roubar um produto num supermercado), um policial branco, uma jornalista branca que testemunha a prisão, um advogado yuppie de origem vietnamita que defenderá o negro no tribunal.
A maneira como o autor conecta esses personagens provoca reações que vão do tédio ao enfurecimento. Vem de um incontível sentimento de culpa contra as restrições que o governo da Califórnia tem imposto aos imigrantes ilegais. De um modo geral, os personagens brancos são mostrados como cúmplices de um massacre racial, anticristão e egoísta.
Negros e outras minorias aparecem idealizados, endeusados de maneira inocente e injustificadamente otimista. A autora June Jordan foi agraciada com o prêmio Lila Wallace-Reader's Digest deste ano.
As performances dos cantores, jovens e iniciantes na maioria, mostram a qualidade da formação desse tipo de profissional nos Estados Unidos, com colocação perfeita e grande alcance de voz. É pena que a música de John Adams seja tão irregular, não tenha impulso capaz de compensar a falsidade engrandecedora da história. Ela é capaz de fazer o espectador ir do enlevo, passando pelo tédio, até chegar à irritação com notável facilidade. A politização de temas no teatro americano contemporâneo mostra facetas opostas, por mais dignificantes que possam ser as intenções de seus autores.

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