São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Modernas e antigas sombras mexicanas

CLÓVIS ROSSI
DA REPORTAGEM LOCAL

"México em Transe", do jornalista Igor Fuser, não é exatamente um livro, mas uma bela reportagem, numa ponta, e um libelo contra o neoliberalismo, na outra ponta.
As únicas deficiências do livro surgem exatamente quanto o tom panfletário do libelo acaba atropelando a reportagem, entendida como exposição de fatos com seus antecedentes e consequências.
A reportagem assusta. É incrível como se conseguiu vender ao mundo a imagem de um país em acelerada marcha para o paraíso primeiro-mundista quando havia (e há) tal quantidade de sombras pairando sobre a realidade mexicana.
Sombras antigas, como o mecanismo institucional que consagra a absoluta hegemonia de um partido (o PRI -Partido Revolucionário Institucional) e acaba configurando uma "ditadura perfeita", na expressão do escritor peruano Vargas Llosa, resgatada pelo autor.
Sombras que foram sendo postas à margem, como se a modernização institucional fosse um apêndice desprezível ante a suposta modernização econômica.
Sombras novas, também. O legado de Carlos Salinas de Gortari, o presidente associado à transformação do México em país supostamente moderno, foi avaliado sempre pelo lado que interessava aos arautos do liberalismo.
Punha-se a ênfase em quantas empresas estatais foram privatizadas, deixando-se convenientemente de lado o fato de que "dos 18 bancos privatizados por ele, 14 foram parar nas mãos de integrantes do comitê de finanças de sua campanha presidencial de 1988", como relata Igor Fuser.
Ou os números relativos ao cotidiano dos mexicanos, a saber: "Os gastos com educação encolheram 21%. O orçamento da saúde caiu de 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB), para 2,7%. O poder aquisitivo dos salários diminuiu, em média, a terça parte. O bolo pouco cresceu -uma média de crescimento econômico real de 0,4% anuais em seis anos, descontado o aumento populacional-, mas a riqueza se concentrou nas mãos de quem já tinha muito dinheiro".
Os números e a realidade da política mexicana já são tão contundentes que dispensariam o autor de recorrer a clichês ou a afirmações temerárias para acentuar a indignação da parte libelo do livro.
Exemplo: "Aparentemente, estavam ligados a quadrilhas diferentes de narcotraficantes".
Refere-se a Raúl Salinas, irmão do ex-presidente, e a José Francisco Ruiz Massieu, secretário-geral do PRI, de cujo assassinato é acusado Raúl Salinas.
Nesses casos, o "aparentemente" é inaceitável. Ou se tem certeza e dispensa-se o "aparentemente" ou não se tem e não se faz qualquer referência.
Escorregões como esse não tiram do livro-reportagem o seu caráter de indispensabilidade para quem pretende tentar entender o México visto em conjunto, na sua política, na sua economia e na emergência da luta armada -e não o México compartimentado habitualmente oferecido ao público externo.

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