São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Aparecida é preta, não negra

LUIZ MOTT
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Preto é a cor: negra é a raça!, costumam retrucar os militantes do movimento negro quando alguém inadvertidamente chama um afro-brasileiro de preto. Hoje, o politicamente correto no Brasil é chamar os negróides de negros. Nos Estados Unidos é o contrário: lá os ex-coloreds, ex-blacks, ex-afros querem ser chamados de "african-americans". A defesa do jogador O.J. Simpson utilizou como uma das principais peças da desqualificação de uma testemunha o fato de que o acusante era racista contumaz: usara frequentemente a inaceitável expressão "niger" (negro). No Brasil colonial houve época em que negro era sinônimo de não-branco, incluindo não apenas os "negros da Guiné", mas também os índios, conhecidos como "negros da terra".
O recente episódio da agressão física e verbal à imagem de Nossa Senhora Aparecida por parte de um bispo da Igreja Universal vem suscitando entre os brasileiros sentimentos os mais variados: protestos verbais e judiciais; desagravos públicos e retaliações por parte dos católicos; indignação até de ateus e protestantes históricos contra a intolerância e a falta de respeito à religião alheia. No bojo desta polêmica, como a suscetibilidade e ufanismo dos negros estão na flor da pele às vésperas do tricentenário da morte de Zumbi, um novo ingrediente começa a ser manipulado nessa guerra santa tupiniquim: a acusação de racismo contra o insulto à imagem de Nossa Senhora Aparecida.
O deputado negro Paulo Paim, do PT gaúcho, registrou denúncia de crime racial, alegando que o crente, ao chamar a Virgem Aparecida de feia, cometeu um insulto racista. O novo arcebispo de Aparecida, d. Aloísio Lorscheider, surfando na onda racial, ratificou esta mesma ilação, associando a aparição da imagem da santa negra, no século 18, a uma espécie de reforço celeste à luta dos negros contra as injustiças da escravidão. A mesma escravidão que era abençoada e fartamente praticada pela Igreja Católica com os negros daqui e dalém mar.
Apesar do apelo politicamente correto destes dois posicionamentos, a bem da verdade histórica e para desmistificar a manipulação oportunista dos mitos, convém esclarecer ao ilustre deputado que Nossa Senhora Aparecida não é negra e ao piedoso cardeal que a Virgem Aparecida nunca foi devoção privilegiada dos negros do Brasil.
"A estátua de Nossa Senhora Aparecida não é senão cópia em barro do retrato miraculoso da aparição de Nossa Senhora do Guadalupe", diz o principal estudioso da padroeira do Brasil, padre João Corrêa Machado, em seu livro "Aparecida na História e na Literatura". A primeira Virgem de Guadalupe teria se manifestado a um humilde pastor dos arredores de Toledo, na Espanha, no século 13: é retratada branca, loira, de olhos azuis.
Já em 1531 consta sua segunda aparição a um índio no México, o qual divulgou sua estampa pintada miraculosamente num pano branco: seus olhos amendoados, cabelos escorridos e pele cúprea sugerem-na resultado da miscigenação entre os colonizadores brancos e os nativos indígenas. Não se conhece nenhuma imagem antiga de Nossa Senhora representada com fenótipos negróides: os poucos santos africanos a merecer a honra dos altares foram Santo Elesbão, Santa Efigênia, São Benedito, Santo Antonio Noto e de Catigeró; Baltazar, o Santo Rei Mago e, mais recentemente, São Martinho de Lima, todos sempre retratados com o cabelo carapinha e demais fenótipos característicos da raça etíope.
No Brasil, nos inícios do século 17, sob o domínio filipino, já existiam quatro altares dedicados à Virgem de Guadalupe. Portanto, a imagem que os pescadores paulistas encontraram no rio Paraíba, em 1717, identificada pelos especialistas como reprodução da Virgem guadalupenha, não apresenta nenhum traço africano que justifique sua identificação como santa negra. Preta sim: a cor escura da pequena imagem original de 42 centímetros explica-se seja pela queima da terracota, seja pelo acúmulo de lodo durante o tempo que esteve submersa no porto de Itaguaçu. Do mesmo modo como a venerada Virgem Negra, a padroeira da Polônia, ícone com nítidos traços caucasóides, tornou-se preta devido ao fumo de um incêndio e não à sua origem negróide.
Pesquisas históricas comprovam que, desde o século 16, foi Nossa Senhora do Rosário (dos Pretos) a devoção que mais atraiu os negros cristianizados tanto na África portuguesa quanto no novo mundo: em uma centena de irmandades negras existentes no Brasil escravista, não há nenhuma consagrada à Virgem de Aparecida. Mesmo na cidade de Aparecida, os negros regionais sempre preferiram realizar suas tradicionais congadas e moçambiques na capela de São Benedito e não na igreja da virgem preta. Também no sincretismo umbandista católico, Oxum e Iemanjá estão associadas a Nossa Senhora das Candeias, da Glória, da Conceição, do Carmo, todas virgens brancas, e nunca à Aparecida. Nos candomblés defensores do purismo-nagô, que rejeitam qualquer sincretismo branco, não há lugar para Nossa Senhora, nem mesmo pintada de preto.
Portanto, é bastante recente no imaginário nacional a associação da Virgem Aparecida com a negritude. Até o propalado milagre do escravo libertado das correntes por intermédio da santa tem seu registro e divulgação somente a partir de 1907, quando os redentoristas assumiram o controle do santuário. Associação que, embora recente, demonstra mais uma vez a cordialidade com que os brasileiros se relacionam, ao menos no imaginário, com a negritude: há notícia de algum católico que tenha protestado ou discriminado a cor preta da padroeira do Brasil? Alguém reclamou que a originalmente branca ou mestiça ameríndia imagem da Virgem de Guadalupe-Aparecida passasse a ser pintada de preto nas estatuetas industriais da santinha?
O termo negro, no linguajar dos brasileiros, se de um lado conserva conotação negativa -como "a situação está preta", "o mercado negro", "não denigra minha imagem"-, não deixa de ser maravilhoso e sintoma de cordialidade máxima, o costume que nós brasileiros temos, inclusive filhos de imigrantes, de chamar às pessoas mais amadas com os termos: meu neguinho, minha neguinha. Meu pai italiano me chama carinhosamente de "negão" e minha mãe, paulista de 400 anos, no telefone me trata por "meu nego". Só vim reparar nestes detalhes linguísticos quando me acusaram de racista por ter sugerido cinco hipóteses a respeito de uma possível homossexualidade de Zumbi dos Palmares. Faça a experiência: chame carinhosamente a um afro-brasileiro de "meu branco" e de "meu negro a um descendente de europeu e veja qual será a reação de ambos.
Zumbi, Nossa Senhora Aparecida e Tiradentes são símbolos nacionais e, como tais, devem ser tratados com respeito, inclusive resgatando-se o que de verdadeiro existe em suas histórias, mesmo que tal depuração documental obrigue a corrigir nosso imaginário. Afinal, nosso compromisso é com os fatos ou com os mitos? A imagem oficial de Tiradentes, com barba e cabelo compridos, como Jesus Cristo, não tem nada a ver com a realidade. Zumbi, nos últimos anos de sua vida, era coxo e continua incógnita sua sexualidade. A venerada escrava Anastácia, "princesa Bantu" com templo e praça no Rio de Janeiro, nunca existiu a não ser na imaginação de seus devotos. Nossa Senhora Aparecida não é negra: é preta.

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