São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Segredos de uma voz

INGO TITZE
DA "NEW SCIENTIST"

Se você ama ou odeia a voz de um cantor é, em última análise, uma questão de gosto. Mas poucos discordariam de que Luciano Pavarotti cantando uma nota alta soa bem melhor do que um João da Silva cantarolando no chuveiro.
Já faz séculos que se discutem os componentes de uma voz "natural". Está claro que ela precisa ter uma altura bem controlada, vibração uniforme e uma qualidade de tom aceitável -que não seja excessivamente nasal, nem aguda ou surda demais, mas equilibrada.
O "combustível" que move a voz é a corrente de ar que sobe dos pulmões. Ela passa pelas cordas vocais, tecido que vibra para produzir as ondas pressurizadas que os ouvidos captam como som.
A altura da voz depende de uma série de fatores -por exemplo a tensão e o comprimento das cordas, que podem ser modificados pelos músculos. O tom é alterado quando se modifica o formato das cordas ou das vias aéreas situadas acima e abaixo, que ressoam como tubos de um órgão. O tom também é afetado pelas posições da língua, maxilar, lábios e até da úvula.
Estabelecer conexões entre qualidade de voz e as complexas vibrações na laringe é difícil -afinal, não se pode abrir a garganta de Pavarotti para descobrir o que acontece lá dentro. Mas fibras ópticas e sintetizadores estão ajudando a formar um quadro mais claro.
As vantagens físicas começam pelo tamanho dos pulmões e das cordas vocais -basicamente, quanto maiores, melhor.
Uma idéia mais especulativa é que o peso corporal extra que possuem muitos cantores líricos também pode constituir uma vantagem física. Essa hipótese surgiu a partir dos estudos da mucosa, uma superfície gelatinosa que cobre as cordas vocais. A mucosa de um milímetro de espessura amortece as colisões entre as cordas. Ela também absorve a energia da corrente de ar vinda dos pulmões, porque é muito flexível.
O funcionamento dessa transferência energética foi analisado matematicamente este ano por Jorge Lucero, da Universidade de Brasília, que também demonstrou que a facilidade com a qual as cordas vocais começam a vibrar depende das características da mucosa.
Os resultados obtidos por Lucero sugerem que, quanto mais grossa e fluida for a mucosa, mais "eficiente" será a voz -ou seja, mais energia da corrente de ar ela vai converter em som, aumentando a potência da voz.
Outra limitação física à qualidade da voz dos cantores é a falta de simetria entre as cordas vocais esquerda e direita. Em 1994 o físico Hanspeter Herzel, da Universidade Técnica de Berlim, juntou-se a mim e a meus colegas David Betty e Brad Story num estudo desta assimetria. Testamos uma "voz desencarnada" -fizemos a laringe extraída de um cão vibrar, utilizando um fluxo de ar artificial sobre um banco da laboratório.
Se os dois lados da laringe não forem suficientemente semelhantes, torna-se impossível manter uma padrão regular de vibrações quando a amplitude e a frequência variam muito, porque as vibrações das cordas ficam dessincronizadas. Se a assimetria for maior, a vibração das cordas vocais se torna caótica, e a voz fica horrível.
Mas as pessoas magras que possuem cordas vocais assimétricas não precisam se desanimar.
Embora alguns dos ingredientes de uma voz cantora perfeita pareçam realmente ser inatos, outros podem ser aprendidos, ou pelo menos aperfeiçoados -por exemplo o equilíbrio ideal entre frequências altas e baixas.
As baixas frequências são ressaltadas pelo tubo vocal inteiro, enquanto as altas são produzidas numa cavidade especial na laringe superior -combinação semelhante aos alto-falantes de baixa e alta frequência de um aparelho de rádio ("woofer e "tweeter").
Os sons vocais de baixa frequência podem ser ressaltados alargando a parte de trás da garganta ou abaixando ligeiramente a laringe, como num bocejo antecipado. Os cantores monitoram as ressonâncias de suas vozes por meio das vibrações que sentem na cabeça, especialmente em volta do palato duro e dos ossos malares.
Richard Miller, professor de canto do Oberlin College, em Ohio (EUA), sabe como produzir essas sensações quando quer.
Vogais que "zumbem", como i e e, formados com a língua no alto da parte frontal da boca, precisam ser adequadamente transpostas e fundidas com as vogais mais "escuras, como u e o, formados com a língua puxada para trás. Uma voz com ressonâncias equilibradas soa ao mesmo tempo retumbante e vibrante.
Outra técnica que pode ser aprendida é encontrar o espaçamento ideal entre as cordas vocais. Quando as cordas são apertadas uma contra a outra com força excessiva, o resultado é uma voz "apertada" -como a de instrutores de aeróbica ou vendedores agressivos demais. Por outro lado, as cordas vocais não devem ser posicionadas longe demais uma da outra porque isso produz uma voz fraca, "cheia de ar".
Os candidatos a bons cantores podem também aprender a controlar o volume, a altura e a qualidade do tom de suas vozes, cada coisa independentemente da outra. Infelizmente a voz humana não possui "botões" que possam controlar uma única dimensão do som por vez -volume e qualidade do som não independem naturalmente um do outro.
Isso nos leva a outra técnica que o bom cantor precisa aprender -a rara habilidade de coordenar grupos específicos de músculos. Um cantor sem treino corre o risco de descobrir que seus músculos abdominais não se relaxam o suficiente, ou suficientemente rápido, para permitir a contração rápida do diafragma -resultando numa respiração superficial e ofegante.
O cantor treinado também é capaz de controlar mudanças de registros vocal -por exemplo, o salto entre um registro vocal de homem adulto falando para aquele de um menino, em falsete. Considera-se que a qualidade da voz deve permanecer constante.
Uma voz treinada também deve fazer uso do trato vocal (principalmente a boca) como megafone, para obtenção da potência máxima. Essa idéia, que se torna intuitiva para todo cantor, é confirmada por minhas pesquisas sobre a transmissão da energia acústica da laringe para os lábios, usando modelos computadorizados.
A quantificação das características de uma voz ideal deverá ser possível nos estúdios de som do futuro, com sistemas de visão por fibras óticas que possam "olhar" dentro da laringe em funcionamento, sintetizadores capazes de imitar vozes e análises de frequência de som que definam sua composição.

Tradução de Clara Allain

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