São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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A beleza convulsiva

NELSON BRISSAC PEIXOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Paris do século 20 imaginada por Jules Verne é uma imensa e intrincada rede de vias férreas, cruzadas umas sobre as outras. Os trens, impulsionados por um sistema de ar comprimido, atingem grandes velocidades. Um disco, movendo-se dentro de um tubo como uma bala num cano, leva consigo, por força eletromagnética, o primeiro vagão, cujas rodas são imantadas. Esses ovos propulsores permitiriam composições ferroviárias muito mais leves e velozes.
O mesmo dispositivo de ejeção que Verne concebe para levar seus personagens à Lua. Um enorme canhão, mais parecido com uma chaminé, que dispara a cápsula como se fosse um projétil. Todas suas viagens extraordinárias são impulsionadas pelos princípios da balística: lançar o mais rápido e o mais longe possível.
A modernidade se faz, efetivamente, sob o signo da ejeção. A mecânica ferroviária introduz a questão da aceleração, permitindo às metrópoles expulsar sistematicamente seus habitantes para os subúrbios e periferias, criando zonas desertificadas em seu interior. Com o trem, os indivíduos têm o primeiro dispositivo industrial de desterritorialização, a experiência da dissolução da paisagem que a arte moderna levaria ao limite. As redes ferroviárias foram pontos de fuga inscritos na paisagem urbana, vetores cortando os antigos labirintos de ruas.
Foi o trem que ajudou a criar nossa percepção do passar do tempo. A estrada de ferro implantou um tempo universal, abstrato, suprimindo as marcações locais. Trouxe a experiência do ritmo, da sequência, elementos que seriam constitutivos do dispositivo e da linguagem cinematográficos, como o travelling. O trem inaugura o processo de aceleração das cidades, a rápida sucessão dos estilos arquitetônicos que caracteriza a metrópole contemporânea.
Mas a ferrovia é também um mundo de coisas que se opõem ao movimento, que oferecem resistência. Coisas feitas para ficar, não disponíveis à manipulação. Elas têm peso, inércia, exigem grande esforço. Aqui nada tem a leveza e a transitoriedade dos objetos atuais. Tudo é feito para mover muitas toneladas. Puxar, empurrar: trabalho sempre reiterado. É o mundo ferroviário: transporte feito por tração.
Nos pátios ferroviários, máquinas e instalações parecem orgânicas. Corroídas, cobertas de poeira, desmembradas, elas se fundem com os tijolos das paredes. Uma pátina recobre tudo por igual. O tempo parece ter petrificado aqueles rolamentos. Locomotivas e vagões, abandonados, enferrujados, depredados, jazem imóveis. A maquinaria da era industrial transforma-se numa forma geológica. O musgo e a hera que brotam de todos os interstícios completam o trabalho do tempo, integrando aquele símbolo da potência transformadora do homem em mais um relevo da paisagem natural.
A estrada de ferro corta a cidade como uma cicatriz. Um percurso que se faz numa área esquecida, para a qual a cidade deu as costas. Viagem por um mundo em suspensão. Apesar da passagem do trem, reina a mais completa imobilidade. Estes espaços estão à espera de que alguma coisa aconteça. Aqui o passado está aguardando o futuro. Uma extraordinária quietude envolve esses lugares.
Antes de iniciarem-se as reformas de Paris, conduzidas por Haussmann -arrasando quarteirões inteiros de pequenas construções e ruelas estreitas para abrir amplos bulevares, acelerando o trânsito e ampliando suas dimensões arquitetônicas-, passou-se a retratar a cidade como um campo de ruínas. Há muito já se estava aceitando a idéia de um grande e inevitável expurgo da paisagem urbana. Daí o aparecimento, a um só tempo, de vários retratos de Paris como uma cidade abandonada e destruída.
Esta sensação de catástrofe iminente, que passou a contaminar a visão da cidade, é que tornaria tão presente o passado na atualidade daquela paisagem. Para Benjamin, nenhuma outra obra pictórica tem maior conexão com esta próxima metamorfose de Paris, tendo ficado pronta antes de esta ser empreendida, que as vistas da cidade em água-forte de Meryon. Suas imagens não são apenas uma visão arqueológica da catástrofe. Não se trata de retratos de demolições. O arcaico transparece na própria paisagem presente. Meryon fez brotar a imagem antiga da cidade sem desprezar um paralelepípedo.
Nessas imagens se evidencia a interpretação entre modernidade e antiguidade a que alude Baudelaire. Há algo no existente que transcende sua transitoriedade e remete ao eterno. É a própria fugacidade da modernidade que a faz antiga. A atualidade se constitui pela intersecção de tempo e eternidade. A cidade de pedra -aparentemente tão imune ao decorrer do tempo- acaba se tornando quebradiça como o vidro. A permanência destas paisagens evidencia-se, paradoxalmente, quando se anuncia sua próxima desaparição. Pois é aí que se confirma seu destino: tornar-se ruína. A majestade da grande cidade se acompanha da sua decrepitude. As paisagens urbanas estão sempre em devir.
É porque o antigo nos aparece como ruína que o aproximamos do moderno, igualmente fadado à destruição. A cidade moderna é o palco de transformações incessantes, que revelam sua precariedade. Ruínas e obras se confundem. Ante a imensidão imponente da cidade -que só encontra paralelo nas grandes cidades desaparecidas da Antiguidade-, somos levados a perguntar: "Quando também aqui desabará a última casa, quando o solo de Paris se assemelhará ao de Tebas e ao da Babilônia?". Basta contemplar, de um ponto elevado qualquer, esse ajuntamento de prédios e monumentos para ter a sensação de que estão predestinados ao desastre. Dessas alturas, o que se torna mais claramente perceptível é a ameaça.
O traçado arcaico da cidade não é, porém, nunca evidente. Ainda menos como simples antevisão. Não é projeção do futuro. Tanto é que Paris continua de pé. Mas o fato de ter permanecido estável é que distingue o moderno da mera novidade e o antigo do apenas velho. A conjunção de tempo e eternidade que constitui a modernidade permite-lhe, senão livrar-se de sua precariedade, ao menos descartar o que tem de trivial. Estes horizontes urbanos, com suas construções transitórias, parecem ter adquirido a consistência e a perenidade das grandes paisagens.
A visão dessa paisagem de ferro confirma o exemplo de Breton da beleza convulsiva surrealista: "A fotografia de uma locomotiva abandonada há anos ao delírio de uma floresta virgem." A natureza aqui cresce só para devorar o avanço do trem, o progresso que ele um dia emblematizou. Esta tensão entre a potência motriz e a inércia natural sintetiza o mundo ferroviário. O trem -como todo o universo fabril por ele percorrido- tornou-se obsoleto. Mas o passado não está apaziguado. Essas coisas aparentemente mortas são atravessadas por um rumor interior, têm as entranhas revoltas, um lençol freático as anima. Daí seu estado de convulsão.
Os surrealistas -diz Benjamin- foram os primeiros a perceber as energias revolucionárias contidas naquilo que é obsoleto, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas fotografias mais antigas, nos objetos que começavam a cair em desuso. Eles conseguiram converter em experiência tudo o que sentimos durante tristes viagens na estrada de ferro, quando os trens começavam a envelhecer. Com suas analogias e entrelaçamentos desencontrados, fazem explodir as poderosas forças contidas nas coisas, arrancando essas arquiteturas seculares de sua evidência banal para envolvê-las nos acontecimentos.
As antigas áreas cortadas por ramais ferroviários, transformadas em verdadeiros desertos, são hoje paradigmas da megalópole contemporânea: tecido urbano esgarçado, elementos desconectados, perda do significado histórico dos lugares. Nessas áreas são jogadas as possibilidades de uma cidade pós-urbana: em grandes espaços e alta velocidade. A megalópole se constitui pelo que a cidade abandonou: as marginais, os antigos centros, as zonas periféricas. Articulação de elementos que permanecem tensionados e fragmentados, histórias cujos fios não podem nunca ser completamente reatados.
Nas megalópoles, a questão ferroviária ganha nova atualidade. O movimento é o principal problema das cidades paralisadas pela entropia do transporte rodoviário. Não por acaso a ferrovia está no centro dos mais importantes projetos urbanísticos internacionais recentemente criados para as grandes cidades. Nesses grandes espaços, o trem é o complemento dos meios eletrônicos de comunicação. São formas aceleradas de deslocamento no universo urbano.
Hoje o trem é uma incógnita. É um objeto que não está em lugar algum. Percorre um hiato entre o passado e o futuro, uma área urbana que parece aguardar seu destino. Para onde vai o trem? Ligado a um passado cada vez mais esquecido, o trem tem lugar no futuro pós-industrial das cidades?

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