São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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O FUTURO DO PASSADO

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 10/01/96
Em junho de 1926, a Estrada de Ferro Central do Brasil anunciava que uma das dez locomotivas recém-chegadas da Alemanha seria batizada com o nome de Marinetti.
Nesse mesmo ano, o poeta italiano e autor do "'Manifesto Futurista" havia passado pelo Rio e por São Paulo, onde escandalizara comunistas e integralistas -não pelas idéias, conhecidas desde 1909, mas por trajar um paletó vermelho.
O tributo da Central do Brasil a Marinetti (1876-1944) indica que o flerte entre vanguarda artística e trens não se restringia ao palavrório dos manifestos. Para a massa que não andava de carro ou avião, trem era o futurismo no cotidiano.
Setenta anos depois, o trem tornou-se um espaço conflagrado. Em horários de pico em São Paulo, são transportadas nove pessoas por metro quadrado, quando o tolerável são cinco. Nesse sufoco, homens de braguilhas abertas encurralam suburbanas enquanto surfistas de trem fogem do aperto para o teto dos vagões, passando a centímetros dos cabos de alta tensão e da morte. Trem é o futuro do passado. Marinetti, a locomotiva da Central do Brasil, virou sucata.
Movimento similar ao do sucateamento de Marinetti aconteceu no trecho que o Arte/Cidade vai percorrer a partir de abril. São cinco quilômetros de trilhos e quatro paradas: Estação da Luz ou Júlio Prestes (ainda não há uma decisão), Moinho Central, pátio ferroviário da rua do Bosque e as ruínas das Indústrias Matarazzo, na região central e oeste de São Paulo.
Foi ali que nasceu a São Paulo moderna -a primeira fábrica, os primeiros serviços públicos, as primeiras escolas técnicas, o primeiro museu de arte e os primeiros prédios de apartamentos. E foi ali que apareceu uma das primeiras zonas mortas da cidade, com prédios abandonados, ex-casarões aristocráticos transformados em cortiços e tráfico de crack.
O apogeu e a decadência dos bairros da Luz, dos Campos Elíseos, da Barra Funda e da Água Branca seguem o movimento dos trens, segundo a historiadora Giselle Beiguelman, 33, pesquisadora do Arte/Cidade. O que aconteceu nesses 50, 60 anos que separam o apogeu do início do século da decadência do pós-guerra?
São Paulo teve duas fundações. A primeira, em 1554, limitou a cidade à chamada "colina histórica", à região que vai do vale do Anhangabaú à praça da Sé.
Era uma cidade sitiada pela serra do Mar. Só cavalos e burros cruzavam os 800 metros de altitude que separavam a cidade do mar. O crescimento populacional ilustra o isolamento. Em 1554, São Paulo tinha cerca de cem habitantes. Em 1872, eram 19 mil. Em três séculos, a cidade cresceu o que a Grande São Paulo cresceria em duas horas em 1982.
Com a ligação de São Paulo ao mar -aberta em 1865 com a São Paulo Railway fazendo a linha Santos-Jundiaí-, o crescimento desembestou. Tanto que em 1900 já havia 240 mil habitantes em São Paulo. Trem, economia cafeeira e imigração são as razões do crescimento, segundo Beiguelman.
Sem trem, não haveria como escoar a produção de café até o porto. E, sem produção de café, os imigrantes seriam desnecessários.
Foi em volta da Estação da Luz, inaugurada em 1867, que a modernidade foi se implantando. Cinco anos depois da estação, a região receberia a primeira fábrica de São Paulo, chamada Grande Fábrica de Tecidos a Vapor. Ficava na rua Florêncio de Abreu, empregava cem funcionários no auge e não deixou vestígios.
Já em 1900, Luz, Barra Funda, Bom Retiro e Água Branca abrigavam 57 das 101 fábricas que funcionavam na cidade.
Era um período em que os bairros ainda não haviam levantado muros imaginários separando ricos de pobres e fábricas de casarões. Tanto que a burguesia cafeeira criaria seus Campos Elíseos e seus casarões aristocráticos logo ao lado da Estação da Luz.
Serviços, como água, luz e esgoto, também não eram um privilégio de bairros abastados. O primeiro bonde a burro (1872) e o primeiro bonde elétrico (1900) passavam pela Luz. O primeiro serviço de água e esgoto (1884) também foi implantado no bairro.
"Essa mistura existia porque as regiões mais equipadas com serviços sociais eram os bairros industriais", diz Beiguelman.
Foi nessa região que a especialização do conhecimento ganhou seus primeiros templos. Nasceram ali a Escola Politécnica (1893), o Liceu de Artes e Ofícios (a partir de 1897), a Escola Livre de Farmácia (1898) e o primeiro museu só de arte, a Pinacoteca (1905).
O maior símbolo desse período talvez seja o prédio das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. Levantado em 1922 à beira da linha do trem, chegou a ser a maior planta industrial da América Latina, com 113.721 m2 -equivalente a 16 campos de futebol. Produzia de velas a óleo de rícino, num arco com cerca de cem produtos. Em 1986, virou ruína. Foi demolida pela família após ser tombada.
As ruínas da Matarazzo talvez sejam mais eloquentes que o slogan de Washington Luís, quando governava São Paulo nos anos 20 ("Governar é abrir estradas"), que ajuda a explicar a decadência do trem e da região onde nasceu a São Paulo moderna.
Com ruínas, como se sabe, é impossível contar uma história com começo, meio e fim. Só é possível se falar de indícios, de vestígios.
É por meio desses vestígios que Nelson Brissac Peixoto, 44, coordenador do Arte/Cidade, quer repensar a região e o trem. "A principal função das megacidades é o deslocamento rápido e isso é impossível sem trens", diz.
Às vezes, nem vestígios há. É o caso do Moinho Central, um prédio de quatro andares com cerca de 20 mil m2 e seis silos de 30 metros de altura. É como uma ilha arruinada, isolada da cidade por duas linhas de trens. Até agora, os pesquisadores do Arte/Cidade não conseguiram recuperar a história do moinho e desfazer o enigma dos escombros.
A primeira armadilha a ser evitada, segundo Peixoto, é o saudosismo: "O Arte/Cidade não vai fazer um trajeto nostálgico, não vai ser um túnel do tempo, uma Disneylândia de sucata. É um embate com uma situação muito tensa".
Uma das razões da tensão é que o abandono não é medido só por ciclos históricos. Ele cresce ano a ano. Em 1991, os trens da região metropolitana de São Paulo transportaram 343 milhões de passageiros, segundo a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). No ano passado, foram 100 milhões a menos -245,6 milhões.
O motivo é simples: sucateamento. Cerca de 35% dos carros estão parados por falta de peças -o índice aceito internacionalmente é de 10%. Impera aí uma lei que parece saída do Velho Oeste: trem parado é trem morto.

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