São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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O sol triste das ruínas

OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Só a consciência sonolenta é imperecível; só o abstrato pode furtar-se à ação do tempo".
Hegel

Memória oficial, monumentos celebram a auto-imagem de uma época, confinam a história à dimensão do feito encerrado-acontecido. Documentos -fragmentos da memória- reabrem o passado. Oficiosos, respondem ao involuntário das recordações.
Autárquica frente ao transitório, a ruína é inintencional. Resiste ao poder destruidor do tempo, como patrimônio derradeiro da aspiração de viajar em sentido inverso ao da morte. Espetáculo da precariedade, as ruínas provocam tristeza inconsolável: a mais bela vitalidade, o mais belo esplendor desapareceram. A ruína é admirável. É miraculum que traduz maravilhamento. Paralisado pelo espanto "o olhar vê o milagre e maravilhas prodigiosas -mirabilia (...). O milagre pertence ao campo do olhar" (1).
No entrecruzamento de tempos heterogêneos, a ruína é o indício insólito de sua própria redenção constante em meio à impermanência e às mutações. Nela, tudo é inédito e, ao mesmo tempo, já acontecido, tudo já morreu e ainda não nasceu: "A felicidade capaz de suscitar nossos anseios", reflete Benjamin, "está inteira no ar que respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderiam ter-se entregue a nós. (...) A imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da redenção. O mesmo se dá com a imagem do passado da qual a história se apodera. Ela traz consigo um índice misterioso que o impele à redenção. Pois não somos tomados por um sopro no ar respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos daquelas que emudeceram?" (2).
Segredo do espaço e do tempo, as ruínas compõem um lugar. Na tradição oriental e na do Ocidente, o místico se revela ao áugure e ao iluminado, ao adivinho e ao profeta, que vêem além do espaço e do tempo. Vêem pelos oráculos. Verdadeiro evento oracular -"hora ocular"-, o tempo é "desejo de estar presente nos rincões longínquos ou em épocas definitivamente extintas" (3).
Que se pense no "Enigma do Oráculo" e nas "Praças da Itália", de De Chirico. Há sempre algo de "helênico", enigmático, em todas as ruínas : morta, Pompéia oferece ao viajante algo deste desejo impossível de contrariar o curso do mundo. E não é algo dela "que se desprende de uma velha ânfora silenciada?" (4).
O mesmo se passa com os santuários antigos, nos quais a resposta de um deus consultado se fazia palavra: "A reputação do oráculo de Apolo de Delfos permaneceu inigualável por milênios. A beleza e imensidão do lugar tomavam de admiração o visitante" (5). Desse assombro é feita a geometria de De Chirico: bandeiras que não ondulam, trens que não transitam, relógios parados. Numa paisagem metafísica, a arquitetura é feita de arcos esquecidos. São eles "memória de uma arquitetura", a lembrança de uma aparição. Arquitetura essencial, sua "sacrabilidade" não comunica o mistério, ela o contém. Hora do enigma é o momento sem antes nem depois: "O dia está para nascer. Esta é a hora do enigma. Esta é, também, a hora da pré-história" (6).
Enigma do oráculo, enigma da hora -os quadrantes nos quadros do pintor marcam 12h48 ou 12h02, revelando um tempo que parou "antes do tempo". Em sombras algébricas e alongadas, a tarde é imóvel e crepuscular. Nas "Praças da Itália", a presença de Zenão, o eleata: Aquiles veloz e a flecha rápida estão parados. Movimento imóvel, o tempo da flecha e a espacialidade de Aquiles conduzem à vertigem. Seu argumento consiste em dizer que um ser que está em repouso ou em movimento no espaço ocupa sempre um lugar igual a si mesmo; também o móvel está sempre no instante, coincidindo com o instante; "a flecha, em movimento, então está imóvel" (7). A vibrante flecha voa e não voa, Aquiles a passos largos está imóvel, imobilidade da flecha e de Aquiles, suspensos para sempre em cada ponto de sua trajetória.
Também as estátuas de De Chirico descansam -atemporais- no pedestal onde nenhum vento sopra, paralisadas como os ponteiros dos relógios; o sol é oficial, a luz ilumina e não aquece. Praças proféticas, fachadas de arcos vazios são, simultaneamente, sem tempo e "tempo redescoberto", elegias que honram a passagem do tempo. São alegorias da presença corpórea do passado.
As ruínas contrariam o devir abstrato do tempo, compensando a sistemática tripartição -antes, durante, depois- pela dinâmica "pas encore" (ainda não) e "jamais plus" (nunca mais): "As ruínas ocupam um justo meio entre o desmoronamento total e uma linha, por assim dizer, inteira; este justo meio se mantém em equilíbrio, em suspenso (...); permite estabelecer um elo da transitoriedade com um mundo para o qual chegou a hora final. Na mescla de efêmero e de apoteose, as ruínas são mais que belas, são veneráveis" (8). Instante único, as ruínas atestam um tempo antes do qual nada foi consumado e depois do qual tudo estará perdido.
Ruínas não são "máquinas funcionando no vazio"; não oferecem o "espetáculo de uma anacrônica sobrevivência" (9). São alegorias do passageiro sobre o qual recai a eternidade. Ocasião de iluminações místicas e profanas, mobilizam a potência de sair de si: "O instante do alumbramento", anotou Davi Arrigucci, "é um momento de repentina revelação, pelo qual as coisas se religam de outra forma, o mundo se transforma pelo impulso do desejo, se ordena sob o claro de luz transfiguradora, pela força da visão" (10). Assim é o olhar visionário do historiador, de quem Benjamin observou ser ele um "profeta que prevê o presente". Na história, as ruínas desafiam a ordem espacial com a desordem das lembranças.
Se o olhar entristecido é aquele que não encontra nada de durável, se em tudo vê ruínas, antes e independentemente de seu desmoronamento, é, porém, para redimir a passagem do tempo. Sua inação não é desmobilização frente à ordem das urgências. Em meio a ruínas, em toda parte há passagens, pois há que reconhecer os caminhos que se desenham entre elas (11). E se ruínas revelam, do ponto de vista da duração, a insignificância das coisas, também, na mesma medida, para a imaginação, são míticas e indestrutíveis.
Há sempre nelas algo de platônico. A dispersão temporal não é o mundo do caos, mas estado de ruína. Ruína: resíduo e lembrança. Em meio ao desaparecimento, são as ruínas guardiãs do imperecível. São vestígios do invisível.

NOTAS
1. Chaui, Marilena, "Janela da Alma, Espelho do Mundo", in "O Olhar" (Companhia das Letras), pág. 36
2. Benjamin, Walter, Tese nº 2, "Sobre o Conceito de História", in "Iluminationen" (Suhrkamp), pág. 251-2
3. Bloch, Ernst, "Le Principe Espérance" (Gallimard), pág. 453
4. cf. Bloch, idem, op. cit.
5. Bloch, Raymond, "La Divination" (Fayard), pág. 48
6. De Chirico, Giorgio, "Il Senso della Preistoria", in "Valori Plastici", novembro de 1918
7. cf. Aristóteles, "Fisica", livro 6, 9,239 e 8,239 (Les Belles Lettres)
8. Bloch, Ernst, op. cit., pág. 455
9. cf. Arantes, Paulo Eduardo, "Hegel e a Ordem do Tempo" (Polis)
10. in "Humildade, Paixão e Morte: a Poesia de Manuel Bandeira" (Companhia das Letras), pág. 252
11. cf. Benjamin, W., "Notícia de Morte", "Escrevendo e Recordando", in "Rua de Mão Única" (Brasiliense)

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