São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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Antes ou depois dos trens de Treblinka

FRANCISCO FOOT HARDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Aprender com a história que nada se pode aprender com ela.
Elias Canetti, "O Suplício das Moscas"
Que é que adianta escolher epígrafe, Larissa? Revolvendo velhos papéis, encontro anotado num caderno que servia ocasionalmente de diário, a caligrafia não deixando margem a dúvida: "(Trem de Praga - próximo a Budapeste): Duas meninas/ são mesmo figuras pelos ares pela/ luz amarela do Danúbio/ queria ser só escritor de paisagens/ mas a vida mesmo me pôs a fabricar mentiras/ árvores húngaras árvores húngaras/ teu verdadeiro nome não sei/ as meninas têm passaporte".
Já sabíamos, então, o dialeto dos trens. A sensação de uma plataforma vazia ou cheia, o expresso que vai chegar ou que partirá inexorável no minuto assinalado; aquele aceno que se amplificava na marcha lenta da saída da gare, havendo tempo, até, para alguma reversão imediata do destino; pequena corrida, tropeço, um salto no vão dos trilhos, corpo cambaleante no vôo imprudente apesar de avisos impressos e sonoros, uma mão apertada de vontade, talvez um abraço, talvez uma frase inaudível, quem sabe, talvez, mesmo que a cena continuasse fora de qualquer filme.
Nunca tivemos medo dos trens, é verdade, sem dúvida também pela distância da guerra. Quando Larissa chegou a Belém, o monumento à Cabanagem já estava erguido na saída da cidade para a Belém-Brasília; nenhum trem da Bragantina, nenhum sinal da inacabada ferrovia de Alcobaça, lá embaixo no Tocantins, mais fantasma que a Madeira-Mamoré, enterrada junto com seus batalhões de maleitosos.
E não precisou de entrevista, de nenhuma mísera palavra, porque nossos olhos se cruzaram na vertigem da luz negra do Lapinha, os olhos de Larissa como lanternas vermelhas e seu vestido branco, e depois dos olhos só havia os lábios vermelhos e seus dentes brancos, um sorriso quase alegre que dizia: Sim. Éramos herdeiros de JK e da Era Rodoviária: impensável, já agora, reconhecer o país pelos trilhos, não era só a descontinuidade de bitolas, era toda a ruína do sistema, dormentes e restos de vagões jogados pelos campos, locomotivas tragadas pela selva como Benjamin Péret já anunciara na "Minotaure em 1937", e isso -impressionante como a ordem das coisas às vezes se embaralha-, muito antes ainda dos trens de Treblinka.
Depois vieram São Paulo e Berlim, o reencontro no trottoir da Savignyplatz, tantos extremos se tocando, que resolvi reler Onetti no expresso para Varsóvia, quem sabe a República da Banda Oriental me ajudasse a entender as fronteiras do Leste, "El Astillero" (O Estaleiro) trazendo-me a esse decadentismo de portos e navios, um amontoado de roldanas e guindastes desolados, poderia muito bem ser o mundo dos meus trens fantasmas, Gdansk, Montevidéu, a imaginária Santa Maria ou Cabedelo, restos de trilhos que já não pretendem transportar ninguém para nada.
E me vieram estes finais de linha imponderáveis, o olho duplo da caixa de fósforos mirando-me fixo na grande parede da fábrica naquela parada do subúrbio de Vila Anastácio, o latim aprendido no "fiat lux que acendeu o primeiro cigarro, ou no "fides, honor, labor" interminável dos galpões das Reunidas Matarazzo, a fumaça de chaminés-mães e de uma locomotiva gravadas no logotipo da firma e de suas embalagens. Para, hoje, adentrarmos nesse grande vazio, o terreno baldio gigantesco onde, ao fundo, tremem as flâmulas do Circo Garcia.
Nenhum trilho mais nesse ramal, Larissa, mas você certamente gostaria de ter visto o equilibrista chinês de três pratos e os formidáveis acrobatas poloneses da família Markov, capazes de perfilar uma pirâmide humana de cinco estágios.
Como escapar ao fascínio dessas engenhosas composições de antigos artífices do corpo? Entretanto, a atmosfera desse trem de Varsóvia atirava-me muito aquém, na direção dos comboios enfileirados para Treblinka, as imagens em preto-e-branco do filme de Wajda sobre a derradeira viagem do professor Janusz Korczak e seus 150 órfãos do gueto, rumo à vala comum de Treblinka.
Era agosto de 1942, o tempo se esboroa, a história imolava suas últimas pretensões aos conquistadores da noite, mas o trem, no filme, parava bruscamente, as crianças saíam pelo campo com seu velho protetor e bailavam fora de qualquer melodia, era bom ver este sonho antes do buraco negro de Treblinka, lugar do vazio para além do limite de qualquer ruína, era bom que os trilhos da arte se interrompessem antes do fim já conhecido, assim como, nesta Sarajevo destruída e revista por Angelopoulos, era bom ver a pausa na guerra provocada pela neblina, a orquestra multiétnica de jovens tocar antes dos próximos tiros, mesmo que logo depois já se soubesse que Thanatos voltaria ao comando pleno da cidade. E dos campos e da viagem.
E, lá, em meio aos corpos em pirâmides macabras incontáveis, Treblinka remeteu 200 vagões de sapatos e roupas de volta ao Reich, afora os trens noturnos semiclandestinos com ouro e jóias. Então Larissa, claro, não tinha sonhado em nascer, mas seus bisavós, ciganos, já tinham pego o trem até o desvio que levava ao caminho de pedras do campo de extermínio.
E mesmo tua memória completamente negada, pois o vazio total é o que não permite registro, mesmo com todas tuas obsessões voltadas para o presente mais rasante, vislumbrei leve fio de humanidade insuspeitada entre você e o professor Korczak, relíquia não escrita, quando te vi, meio século depois, do lado do caixa eletrônico, conversando como uma igual com os meninos da rua Augusta, todos os trens da modernidade descarrilados para este bailado de afetos que nenhuma língua, nem mesmo a de um lamento de cigana, seria capaz de traduzir. Pontes temerárias entre eras, de fato; mas, afinal: estamos ou não dentro da mesma história?
Quando você me ligou, falando de voltar ao Brasil e a Belém, eu disse, bem, quem sabe um dia ajudamos a consertar este país, embora você confiasse agora demasiado no poder de um celular como antes pensara que a agenda te tiraria do vermelho. Nem tanto: não era para depositar tamanha crença, era que nem quando você encarnava o espírito de Mariazinha, achando que te iluminaria nas noites sem droga, aflitas.
Você continuava agitadíssima, Larissa. Bety já tinha voltado para Balsas, Maranhão. Glauce Kelly partira com o dinamarquês das madeiras para Amsterdã. A esperta Márcia já estava em Uberlândia, agência de revenda de carro importado montada. Que é que você vinha fazer nessa zona? Mas contigo não havia meia medida nem exercício de ponderação.
E, da mesma forma que carregaram os caminhos de ferro para outra galáxia espaço-temporal, não sendo mais possível algo de veleidade romântica a respeito de algum encontro ferroviário, pelo menos fora da Europa, assim também não tínhamos palavras que dissessem bem da força vã daquele amor, que pudessem repetir nossos entreolhares mais fundos no Lapinha e que fizessem reviver este absoluto imperativo: venha. Não, não, que aliás quase nunca houvera palavras.
E, até porque nos gostávamos demais, ninguém se atrevia, agora, a arriscar roteiros ou prometer passagens. E, no entanto, havia que inventar uma última frase. E foi duro dizer, com sentimento verdadeiro, para um ateu, escolhendo entre o silêncio e a mentira: "Fique com Deus"; e, mais insuportável ainda, ouvir este teu "amém" quase sussurrado, pura fé límpida, instantânea, que se foi com sua voz, rápida, rouca, como fagulha de uma composição ferroviária extinta, fim de uma prece inexistente, um coração apertado de verdade, talvez um soluço contido, talvez algum presságio, quem sabe, talvez, mesmo que a viagem já tivesse, há muito, acabado. Mesmo que não tenhamos nunca, nem em sonho, viajado juntos de trem.

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