São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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29 de outubro

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Cinquenta anos atrás eu deixara o seminário havia pouco e estreava um terno azul marinho e uma gravata que era meio para o bordô, com bolinhas brancas.
Sentia-me desengonçado no "layout" paisano, mas recebera a roupa na véspera, mister era usá-la, eu nada tinha a fazer na cidade ou em qualquer outro lugar do mundo, mesmo assim vesti-me como se fosse a uma cerimônia. E como era moda na ocasião, ensopei os cabelos com Glostora, um fixador que me faria preferido pelas mulheres.
Tomei o ônibus, sentei-me em uma das janelas para que melhor visse o mundo e melhor me vissem. Ignoro se alguém reparou na minha suspeita elegância, o fato é que eu reparei no que vi. Ali pelo Campo de Santana havia soldados no chão, com metralhadoras apontando as cutias do jardim.
Eu não adquirira, ainda, o pernicioso hábito de ler jornais, não sabia o que estava acontecendo. Na Cinelândia, mais soldados em posição de tiro e um tanque de guerra atravessado na pista, junto ao obelisco onde os gaúchos, 15 anos antes, haviam amarrado seus cavalos.
Como a guerra terminara meses antes, pensei que se tratasse de alguma homenagem aos pracinhas ou um exercício preliminar para uma futura guerra -tudo era possível. Fui ver um filme com Ginger Rogers e Joseph Cotten, tomei um sorvete na Brasileira e ia pensar no que ainda poderia fazer com aquele terno, aquela gravata e aqueles cabelos ensopados de Glostora quando um jornaleiro pulou de um bonde e tomou outro, gritando: "Getúlio caiu! Fim do Estado Novo!"
Então era isso. Golpe de Estado resumia-se a um golpe no trânsito. A facção que colocasse o primeiro tanque no meio da avenida ganhava a parada. O ditador voltaria para seus pagos depois de 15 anos no poder. Fui olhar o obelisco. Já não havia mais cavalos nem tanques.
A história encerrava um ciclo. E eu encerrei meu dia penetrando na noite da Lapa, onde uma mulher que nunca me havia visto me chamou de querido e eu ia acreditando.

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