São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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inteligência o quê?

CAIO TÚLIO COSTA

Termos como inteligência artificial servem para ocultar a vontade de um domínio tecnicista
Inteligência vem da junção das palavras latinas inter (entre) + legere (escolher). Por meio da seleção e da escolha, os humanos compreendem as coisas.
Na Idade Média os filósofos se referiam à inteligência como a parte superior da alma e sua capacidade de conhecimento. Desde então, compõe um trio inseparável: memória-inteligência-vontade.
Quando se fala em inteligência artificial (tema da quinta sessão dos Diálogos Impertinentes, promovida pela Folha e pela PUC terça-feira, 20h, com transmissão pela Net Brasil e Multicanal), ninguém pode deixar de lado este ternário. É aterrorizante imaginar essas três atividades operando conjuntamente em outro local que não o cérebro humano.
Seria possível dotar um computador de razão? Capaz de compreender, julgar, ter bom senso, juízo?
Os computadores guardam ainda a base de seu desenvolvimento na década de 40, a capacidade algorítimica, aptos para resolver cálculos científicos mas não para analisá-los, como se explica na "Enciclopédia Filosófica Universal", o local menos suspeito para uma consulta sobre máquinas teoricamente habilitadas a simular a inteligência.
O computador tem conseguido ultrapassar o homem na rapidez e na confiabilidade das operações matemáticas, nas tarefas de rotina, nos encadeamentos lógicos. A máquina na qual escrevi esta coluna, evidentemente, não compreende o texto escrito nela. Pode até vertê-lo para outra língua, mas jamais vai poder entender e traduzir em toda sua profundidade o significado doce e doloroso de uma palavra como saudade, existente somente na língua portuguesa.
Já inventaram programas de computador, como o Eliza, que "conversa" com as pessoas e parece compreendê-las. Representa comportamentos pré-definidos, como o de um psicanalista, e responde com alguma lógica a questões menos profundas. Tudo pré-programado e incapaz de evitar o inesperado.
Enganar com o computador, como se vê, pode ser possível. Calma. Ninguém se preocupe se a técnica parece dominar tudo e os técnicos assumem ares de seres todo-poderosos e únicos receptáculos de um saber só entendido por eles, porque falam entre si numa linguagem cifrada e incompreensível.
Tudo pode ser decodificado facilmente, e o que hoje parece intransponível não o será logo mais. Basta ver a facilidade da criançada com os computadores. Assim, termos como inteligência artificial ainda servem, apenas, para ocultar a vontade de um domínio tecnicista sobre o saber universal e humanista.
Se é possível criar máquinas habilitadas no domínio da lógica para resolver problemas estratégicos, não é possível dotá-las dos atributos inerentes à condição humana.
Conforme defende L. H. Dreyfus ("Intelligence artificiele - Mythes et limites", 1984), existem quatro postulados bastantes discutíveis quando se fala de inteligência artificial: o biológico (os impulsos cerebrais), o psicológico (a própria mente), o epistemológico (relativo ao saber e às suas formulações) e o ontológico (os elementos determinados e independentes de todo contexto).
Na porta do século 21, o desenvolvimento das tecnologias é exponencial, basta refletir com traquilidade para saber que a técnica ajuda, facilita e até resolve, mas não é tudo e nem pode superar o cérebro humano naquilo que ele tem de melhor -e pior: a razão -ou desrazão.
A desafiadora expressão inteligência artificial, portanto, pode enganar mais do que esclarecer. Prefiro a reação de Millôr Fernandes ao saber deste diálogo impertinente: "Me chamem quando forem discutir a burrice natural".

Ilustração: "Retrato de Van Gogh" (1985), de Morimura Yasumasa

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