São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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retratos da exclusão

LÚCIA CRISTINA DE BARROS

O carioca Hugo Denizart, 49, começou a fotografar aos 22, por ciúme. Tinha uma namorada que era modelo. A moça passou, a paixão pela fotografia cresceu e as imagens extravasaram para filmes e livros. Sua lente mira sempre as minorias: "O que me fascina é tentar entender como elas inventam uma linha de fuga que rompe com as amarras do cotidiano". Nos 80, fotografou na favela Cidade de Deus e no hospital psiquiátrico Juliano Moreira -onde descobriu o artista Arthur Bispo do Rosário, cujas obras foram exibidas na última Bienal de Veneza. O novo trabalho de Denizart desvenda a Vila Mimosa, centro de prostituição do Rio, onde ele entrou distribuindo livros de poesia. "Foi meu passaporte", diz o fotógrafo e psicanalista que há 20 anos desenvolve projetos com comunidades excluídas. O resultado desse mergulho está na exposição "Masculino Sonha Feminino", a partir do dia 11 no vão livre do Masp, em São Paulo.

Como você escolhe seus projetos?
Tudo o que as pessoas recusam, eu adoro. Gosto de entrar na contramão do senso comum, que é uma zona morta. Quanto mais repulsa existir em relação ao lugar, mais fascinado sou por ele. Fotografei os catadores de papel que vivem no centro do Rio em carrinhos, onde têm cachorro, mulher, papagaio. Eu era fascinado por essa mobilidade.
Por que prostitutas, agora?
Acho a questão feminina interessantíssima. A mulher prostituta tem sempre uma coisa incompreensível para o senso comum. Agora, estou fazendo um trabalho sobre travestis, "Insurreição Erótica".
O psicanalista influencia o fotógrafo?
Tudo que abre a possibilidade de pensar influencia um trabalho. O que busco é olhar com densidade.
Qual o objetivo do seu trabalho?
Minhas fotos são contundentes, mas minha idéia não é fazer estereótipos. Depois de Juliano Moreira (hospital psiquiátrico), nunca mais trabalhei com rostos. As fotos são detalhes do corpo, onde se fabrica uma espécie de contra-resistência institucional. Essas pessoas não têm nome, nada. Sobra o corpo. Considero que num corpo tudo é rosto.
Quais são suas referências básicas?
Fui influenciado por Cartier-Bresson (fotógrafo francês). Fotografo com lente normal, não faço cortes nos negativos. Trabalho de uma maneira simples. A sofisticação vem de como a imagem é concebida. Quando fotografo uma prostituta, sou capaz de fazer dez filmes de 36 poses dela. É uma aproximação cada vez mais complexa.
Como é seu dia-a-dia?
Trabalho como psicanalista e reservo um dia da semana e os finais de semana para os projetos. Não vou todo dia porque me cansa muito, a tensão é grande. Por mais cuidadoso que eu seja, cometo equívocos.
Você já correu riscos?
Já e tenho muito medo. Na Vila Mimosa, descobri uma coisa fantástica. Lá, as mulheres transam dezenas de vezes por dia, mas os maridos e amantes tinham ciúme porque eu fotografava. É fascinante aprender com esses mundos tão diferentes. Mas não vou a esses lugares para morrer, para me aborrecer e ser vítima de uma violência ou ser violento. Vou para fazer um trabalho.
Os filmes são extensão das fotos?
Como todo meio de expressão, a fotografia às vezes deixa uma lacuna, tenho vontade de colocar som. Fiz quatro filmes e dois livros de poesia, mas sou só aprendiz de cineasta, não me considero poeta.
Por que você optou por expor na rua?
Esse é um projeto antigo. É um barato romper os espaços sempre viciados de galerias.
Você continua como psicanalista porque precisa ou porque gosta?
Gosto muito. Tanto o trabalho no consultório quanto o de pesquisa são a desmontagem das amarras do cotidiano. Ajudar uma pessoa a inventar novas possibilidades para a vida dela é atraente pra mim.
Explique seu fascínio pelas minorias.
Elas têm uma inclinação para o futuro. Eu me cansei de viver o passado. Gosto muito dessa sexualidade de ruptura que as minorias exercem. Queria aprender isso. A maior parte das coisas que a gente aprende é de uma bobagem atroz. Somos treinados pra fazer uma hierarquia da imbecilidade. A experiência com esses grupos potencializa o meu desejo, e eu quero ir em direção a coisas que me potencializem. O Spinoza (filósofo holandês do século 17) dizia que só conhecemos as paixões tristes, que nos enfraquecem. Quero que minhas paixões me fortaleçam. A experiência pode ser ilimitada, apesar de a vida ser finita.

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