São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 1995
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Aflições de um trompetista

JOSUÉ MACHADO

O plácido jornalista, trompetista e empresário Gabriel Tranjan costuma se irritar particularmente por dois motivos:
1. textos mal-alinhados, em que o sujeito se divorcia do verbo, como o governo do povo, e vírgulas pingam surpreendentes, fora de bons lugares, como que caídas do céu;
2. que chamem de "trumpete" o instrumento que toca com mestria, como na seguinte legenda de uma revista:
"No trumpete, o músico Sérgio Campanelli."
- De onde tiram o "u" que enfiam em "trumpete", pergunta Tranjan, sem perder a fé na humanidade. De onde?
Ele não deveria fazer uma pergunta provocativa como essa. Mas faz, não espera a resposta, sorri e diz, paciente:
- Não é "trumpete"; é trompete, como "o" de coco.
Ele tem razão, assim como os dicionários, que registram "trompete" e chamam de "trompetistas" pessoas como Tranjan e Wynton Marsalis.
Por que ninguém fala ou escreve "trumpa", "trumbone", "trumpista" e "trumbonista"? Todas essas palavras têm "o" na primeira sílaba e ninguém se confunde com elas: trompa, trombone, trompista e trombonista. Tinham de se confundir logo com o instrumento do Tranjan.
Trompete vem da palavra francesa "trompette". Alguns o chamam de pistom ou pistão porque ele é provido de pistons, o trompete de pistons, traduzido do francês "trompette à pistons". Essa infeliz metonímia, em que apelidam o trompete com o nome de uma de suas partes, também desgosta Tranjan. Também é só isso. Nada mais.
Poste escrito: Era preciso informar na legenda que o cidadão com o trompete no bico é músico? Por que o legendário faz uma coisa dessas com os leitores? Se ele fosse um transeunte ou estivesse com uma banana na boca, talvez tivesse sentido informar que é músico. Ou, estando a soprar um trompete, se tivesse outra formação que não a de músico, seria o caso de informar os distintos leitores: "Fulano de tal, lutador de sumô..." Sim, sim, é claro que o espaço e o tempo são curtos e que é preciso dizer algo. Mas é muito feio menosprezar a inteligência do nosso próximo. Muito feio.

O embaixador e o copo
Quando o embaixador Sérgio Silva do Amaral, porta-voz do presidente FHC, aparece na TV, impossível não sentir na hora uma enorme vontade de cair na cama e fazer naninha, tal o entusiasmo com que ele porta a voz. Se os sem-terra invadissem a fazenda do presidente, tem-se a impressão de que ele portaria a opinião presidencial com o mesmo ardor inflamado com que a portará sobre o apoio, garantido por ACM em Nova York, do Congresso à possível reeleição de FHC. Ou uma visita de ETs verdinhos ao presidente no Palácio da Alvorada. Seria o embaixador entusiasmado assim com tudo quanto faz? Tudo?
Que vibração! Que vigor inaudito! Co'os diabos! Pois no Segundo Fórum da Folha de Jornalismo e Mídia, ele falou sobre "Imprensa e Governo" com pertinência e precisão. Quase beirou o entusiasmo. Quase. Mas, para expressar a noção de relatividade das coisas, usou a imagem do copo com água pela metade. Disse então que o copo podia estar cheio pela metade ou vazio pela metade, dependendo do ponto de vista.
Cheio pela metade ou vazio pela metade? Coisa estranha porque se o copo estiver vazio não haverá metade que o livre dessa condição indigente. E se estiver cheio estará repleto pela soma das duas metades felizes, diria nosso amado Conselheiro de braço dado com Descartes.
É claro que o embaixador, não fosse prejudicado pelo calor flamejante de seu discurso, teria falado melhor em copo quase cheio ou quase vazio.
Não faz mal. A vibração às vezes gera imprecisões, perigo de que o embaixador quase certamente está livre.

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