São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 1995
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Galileu

JOÃO SAYAD

A gente sabe que não pode atravessar paredes, ficar jovem a vida inteira, cultivar morangos no deserto ou plantar papaia em Provence. As limitações físicas, químicas e biológicas a gente conhece bem. São barreiras muito evidentes a nossa liberdade. E o capitalismo nesses últimos 300 anos tem feito milagres para ampliar nossa liberdade física. Já podemos voar até a Lua, criamos leitões sem gordura e falamos com o mundo inteiro sem sair do lugar.
Mas prestamos muito pouca atenção às barreiras que as idéias criam a nossa liberdade. Talvez porque as idéias sejam invisíveis. Vivemos presos a um mundo de idéias que, apesar de serem apenas idéias, são tão intransponíveis como portas fechadas, tão difíceis de serem ampliadas quanto os anos de juventude e que causam tanto sofrimento quanto a fome, a morte e a dor física.
Estamos presos por idéias do passado que se desenvolvem mais lentamente do que o mundo material, idéias que têm raízes em lugares tão profundos da vida mental que não conseguimos nos libertar delas. Basta pensar nos movimentos feministas, no preconceito racial e contra os homossexuais. Quanta coragem precisou George Sand para usar calças no século passado!
Mesmo para os pensadores mais criativos, sem preconceitos, radicais, de vanguarda, as idéias não conseguem andar tão depressa quanto gostaríamos: Leonardo da Vinci foi capaz de imaginar um helicóptero, um submarino e tantas outras invenções que, entretanto, levaram quase 400 anos para serem reais.
Nos anos iniciais deste século, as pessoas que não conseguiam emprego eram chamadas de vagabundas ou preguiçosas.
Somente nos anos 30 a questão do desemprego passou a ser vista como um problema social, decorrente do mau funcionamento da economia e associado à política monetária e de crédito. No Brasil, nos anos 20, os representantes da indústria de São Paulo consideravam o descanso semanal como uma experiência muito arriscada pois o ócio dos operários no domingo levaria ao vício, ao crime e à libertinagem.
Os desempregados tiveram de esperar muitos anos para que o conceito de desemprego se tornasse uma questão de mau funcionamento da economia.
Em política, a nossa liberdade está restrita não apenas ao campo das idéias possíveis, mas também pelas idéias vencedoras, que expulsam e proíbem as idéias derrotadas.
O líder político precisa ler nas entrelinhas, sentir no ar as idéias que estão voando e, como um catalisador, precipitar as idéias vencedoras, ainda que tenha convicções diferentes ou que saiba que a verdade é ou será diferente do que pensam os vencedores. Líderes não podem ir contra as idéias vencedoras ou contra forças que não conseguem ultrapassar. Galileu, acusado pela Inquisição de acreditar que o Sol era o centro do mundo e a Terra se movia, apesar de intelectual, negou a sua crença para escapar da fogueira.
É assim que compreendo a frase do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando disse, muito corretamente: "Esqueçam o que eu escrevi". Como ser o presidente de um país que depende, como todos os países do mundo, de capitais externos, da opinião dos investidores nacionais, se não prestar uma homenagem as idéias vencedoras de seu tempo? É a melhor opção em termos estratégicos e na defesa dos maiores interesses do país que um intelectual deveria fazer quando eleito presidente da República.
Abre um flanco largo na barreira dos soldados das idéias vencedoras, permite resolver os problemas mais sérios da economia nacional. E, por outro lado, ganha espaço e liberdade para adotar políticas e fazer o que precisa ser feito para resolver os mais sérios problemas do país na área de desemprego, da violência e da exclusão social.
Talvez seja essa a definição melhor de social-democracia: a homenagem sincera às vitórias do capitalismo por um lado, e o reconhecimento de que o desenvolvimento da economia de mercado é insuficiente para resolver os problemas de desemprego e exclusão social.
Ao tirar o chapéu para as idéias vencedoras, pode virar de costas para elas em seguida, e tratar dos problemas que o mercado, a abertura e a privatização não conseguem resolver.
Infelizmente, não existem idéias nem aqui nem no mundo que nos ensinem como tratar ou resolver esse problema novíssimo, filho do sucesso do capitalismo.
Tenho certeza de que na hora de dormir, o presidente deve desabafar como Galileu e resmungar com o seu travesseiro: "Pois é, mas a Terra se move."

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