São Paulo, quarta-feira, 1 de novembro de 1995
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Makhmalbaf bota cultura do Irã no espelho

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Em 38 anos de vida e 17 de profissão, Mohsen Makhmalbaf fez 13 longas-metragens, dois curtas, escreveu vinte livros (entre romances, livros sobre arte, coletâneas de arigo), montou vinte filmes (sendo dez dele mesmo).
Entre os 17 e 22 anos, passou quatro anos e meio preso. Ao sair, com a revolução que derrubou o Xá em 1979, trocou a política pelo cinema. Tornou-se um dos principais cineastas de seu país.
Amanhã, Makhmalbaf terá exibido, "Salve o Cinema", seu filme mais recente. Nesta entrevista à Folha, ele fala de sua trajetória, de seu país e de seu cinema.

Folha - Como o sr. vê a evolução de seus filmes?
Mohsen Makhmalbaf - Eles têm três estilos. Os três primeiros eu chamo filmes de aprendizado. Depois, há uma fase de filmes sociais. E há os filmes mais recentes, os filmes de "troca de luga"r.
Folha - É o caso de "Salve o Cinema"?
Makhmalbaf - Sim. Ou "Tempo de Amor". Em "Salve o Cinema", chamo pessoas comuns para escolher os atores do filme. Em determinado momento, troco de lugar com duas garotas. Eu digo: "Sentem no meu lugar e dirijam exatamente como eu fiz". No mesmo instante, elas assumem uma atitude autoritária. Tento dizer com isso que há muitos problemas na cultura iraniana. A troca de lugares é como botar um espelho diante do espectador.
Folha - O diretor de cinema é cruel como no filme?
Makhmalbaf - Não. Há ali dois Makhmalbaf. O que está atrás da câmera é um democrata. O que entrevista os atores, é o que tem o poder. Do outro lado da mesa estão o povo e seus problemas. Tento usar esses três níveis: o poder, o povo e o cinema. Quando troco de lugar com as moças, você vê elas mudarem de atitude. Elas dizem: "Chore, chore".
Ou seja, elas tomam o poder e fazem do jeito que eu estava fazendo. Este é o meu ponto: os problemas estão na cultura, não na política.
Folha - Ou seja, não é preciso fazer chorar para ser ator.
Makhmalbaf - Não. Isso é só o símbolo do meu tema. Tanto que uma garota me responde: "Eu não quero chorar. Eu quero ser feliz". E é essa moça que eu escolho.
Folha - O sr. defende o realismo. É difícil chegar a ele?
Makhmalbaf - Sim. Quando estou no cinema, acredito em muito pouca coisa do que vejo. Porque o lugar, a luz, as pessoas não são reais. O que procuro é a vida em frente à câmera. Não gosto quando colocam a câmera antes de ter as imagens na cabeça.
Eu, por exemplo, vivo no sul de Teerã, uma zona de pessoas muito pobres. Eu gosto delas, quero que suas vidas mudem, e para isso é preciso que vejam a realidade refletida nos filmes. Daí a idéia de usar o cinema como um espelho.
Folha - Em "Salve o Cinema", o sr. parece dizer que o paraíso não existe. É isso?
Makhmalbaf - Não. O paraíso é possível. Mas para chegar a é preciso conhecer a si mesmo.
Folha - Também se diz que o sr. foi bastante próximo dos fundamentalistas. Isso é verdade?
Folha - Nunca foi próximo do governo, e sim da revolução. Por quatro anos e meio eu estive na prisão, no tempo do Xá. Ali, fiquei amigo de pessoas que depois se tornaram importantes. Mas deixei a política. Porque se pode mudar o governo, mas o essencial é mudar as idéias.
Folha - O sr. enfrenta problemas com a censura no Irã?
Makhmalbaf - Dois dos meus filmes ainda estão proibidos: "Tempo de Amor, que rodei na Turquia, e "A Noite do Rio Sayandeh", de 1989. Então, não é que eu fui próximo do governo. O governo, ou pelo menos a censura, é que agora está contra mim.
Folha - Em "Close-Up, de Abbas Kiarostami, o sr. diz a alguém uma frase curiosa: "Eu estou cansado de ser Makhmalbaf". O que significa?
Makhmalbaf - Eu tinha muitos problemas. Sou muito conhecido no Irã. Lá, três milhões de pessoas vêem meus filmes, lêem meus livros etc. E como gosto das pessoas pobres, elas me procuram, pedem ajuda, tudo. Também havia os problemas com a censura. E no Irã eu não tenho tempo para nada. Foi nesse sentido que falei.
Às vezes alguém me pergunta: "Como faço para ser um Makhmalbaf?" Eu respondo: "Quero que você me diga como é que eu faço para não ser Makhmalbaf".
Folha - O que o sr. vê como o maior problema do Irã, hoje?
Makhmalbaf - O povo iraniano é voltado para o passado, não para o futuro. Temos uma cultura de 2.500 anos. São 2.500 problemas históricos em nossa vida. O Brasil tem 500 anos de história. É mais fácil para vocês olhar o futuro. No Irã, muita gente vive no passado. Temos de lhes mostrar o futuro.
Folha - Como o sr. passou da política ao cinema?
Makhmalbaf - Uma vez fui ao cinema, vi um filme comercial iraniano e decidi ser diretor. Não fiz nenhum curso, nada. Meu avô me emprestou um pouco de dinheiro e aluguei uma câmera. Peguei os atores no povo comum. Quatro meses depois, eu já era diretor.
Folha - Como vê o cinema iraniano e seu sucesso mundial?
Makhmalbaf - Temos cerca de 320 realizadores. Há os que fazem filmes de propaganda, os que fazem filmes comerciais e só uns 20 que fazem filmes empenhados. Fazemos 70 filmes por ano, mas só cinco com interesse artístico.
Há várias razões para o sucesso. Os filmes são simples, têm qualidade, são realistas. Além disso, o filme iraniano é um filme iraniano.
Há uma quinta razão: a vida no Irã é muito barata e um filme custa pouco. O meu "Era Uma Vez no Cinema" era uma grande produção, e custou US$ 200 mil. Por fim, o governo bloqueia o filme americano, para dar mais ênfase à nacionalidade. Isso ajuda.

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