São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Fernandus Cuntactor

ROBERTO CAMPOS
"PLANOS DE GOVERNO SÃO SONHOS COM DATA MARCADA."

(James Buchanan)
Procrastinar nem sempre faz mal. Fábio Cuntactor, o general romano que derrotou Aníbal, assumiu gloriosamente esse apelido porque, evitando o combate aberto, em que o formidável cartaginês até então era imbatível, ganhou tempo e cansou o adversário, enquanto esperava que os políticos, em Cartago, no seu corporativismo e falta de visão, fizessem o resto.
Que poder esperaria, no entanto, Fernando Henrique, ao apresentar incompletos os elementos mais importantes do programa com o qual se elegeu? Ouviu-se muito o argumento tático de que, se o conjunto das propostas da campanha fosse apresentado em bloco ao Congresso, este rebarbaria.
Mas a experiência, aqui e alhures, não tem sido sempre essa. Roosevelt, eleito durante a Grande Depressão, pôs tudo na mesa de início, nos famosos "cem dias". Parte do seu programa não passou ou foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte. Mas, como o economista liberal Milton Friedman observaria depois, o efeito final fora muito favorável. A mística do "New Deal" ajudou a "fazer a cabeça" do povo americano. Entre nós, citaremos dois casos: Juscelino, que apresentou de entrada o Programa de Metas, e Collor, que anunciou um mega-tratamento de choque. As Metas correram bem. E Collor mudou a agenda do país, embora, por motivos conhecidos, terminasse em desastre.
A experiência brasileira mostra que o Congresso Nacional é sensível à opinião pública, e não tem negado razoável apoio ao Governo. Claro que opiniões interesses divergem, e que políticos têm de pensar em eleições. Mas Fernando Henrique, legitimado amplamente pelas urnas, tendo por si o êxito do Plano Real e a consciência general da seriedade dos problemas do país, não tinha porquê temer.
Apesar do seu excelente programa, Fernando Henrique, tardou em desdobrá-lo em formulações mais concretas. E perdeu a oportunidade de apresentar ao país, de início, toda a grave extensão dos problemas econômicos e do descalabro do Estado. É óbvio que a disposição do público, do Congresso e dos Governadores para aceitarem medidas duras iria depender da percepção da catástrofe à vista.
Um dos mais difíceis e previsíveis problemas era a dívida pública da União, dos Estados e Municípios. Qualquer economista saberia que, com a brusca redução da inflação, e os efeitos cumulativos do empreguismo, dos marajás e privilégios corporativos, e do peso dos dinossauros estatais a situação financeira de todo o setor público tenderia a deteriorar-se explosivamente, mesmo que a União conseguisse equilibrar-se com uma política monetária apertada. A dívida dos Estados e municípios quase dobrou desde o início do Real. Segundo o BC, até agosto o setor público já acumulava um déficit operacional de perto de R$ 15 bilhões, 3,3% do PIB, para o qual a administração direta dos Estados e municípios contribuía com cerca de R$ 11 bilhões, e as estatais federais, estaduais e municipais, com mais de R$ 1,3 bilhão - isso apesar de a arrecadação ter passado de 22 a cerca de 30% do PIB, em termos reais. A consolidação a longo prazo da dívida dos Estados e municípios será um pesadelo recorrente se não cercada de condicionalidades, como a eliminação do "marajaismo, e a caução de ações das empresas estaduais, que poderiam ser privatizadas como punição da inadimplência.
Que dizer do Plano Plurianual (PPA) -uma obrigação constitucional de enumerar os gastos que durem vários anos- que o Governo resolveu embelezar com ares de plano macroeconômico? Planos macroeconômicos estão fora de moda, mas esses são outros quinhentos milréis. Só queremos assinalar o otimismo das previsões para 1996/99:
Ninguém do ramo poderia, tampouco, desconhecer que a "âncora cambial" iria provocar uma sobrevalorização do Real, e obrigar a uma política de juros elevadíssimos, com reflexos negativos.
Era óbvio que se tornariam indispensáveis: (i) uma reforma patrimonial, isto é, vender ativos para saldar passivos, privatizando atividades em que a iniciativa privada é muito mais eficiente do que a corrupta máquina pública; (ii) uma reforma fiscal saneadora dos desequilíbrios estruturais das contas públicas; (iii) uma reforma administrativa da máquina do Estado, emperrada, ineficiente e caríssima; (iv) uma reforma da Previdência, que literalmente está chegando à beira da falência, com um sistema de privilégios absurdos para alguns, prodigalidade de benefícios com dinheiro que não existe, e já se aproximando de um inativo para 2.5 pessoas ocupadas.
A equipe econômica está aí desde maio de 93. Vai fazer dois anos e meio. Pôde fazer o Plano Real com toda a tranquilidade, o que decidiu a eleição, porque o povo queria ordem e estabilidade, coisa que só os políticos parece não estavam vendo. Quando Fernando Henrique subiu a rampa do Planalto, já fazia 19 meses de comando da economia. Isso é tempo mais do que suficiente para possibilitar as reformas ainda no calor da vitória eleitoral.
A demora na formulação de objetivos claros e endossados pela vontade eleitoral, tomou ocasionalmente matizes de intrigas cortesãs. O ministro fulano puxa o tapete do ministro beltrano. A privatização é importante, diz o discurso presidencial, e funcionários responsáveis ressumam otimismo para o ano que vem, e para o setor das telecomunicações. Não é tanto assim, diz o ilustre Ministro do Planejamento. E as providências vão ficando para trás. É uma péssima sinalização para o mercado. Na verdade, a privatização da Light e da Vale do Rio Doce se transformaram em símbolos de vontade reformista do Governo brasileiro, e hoje começa a haver dúvidas internacionais sobre nossa capacidade de reformatação do Estado. O Governo perdeu quatro meses para decidir se era ou não necessária autorização legislativa para a cisão da Light, previamente à privatização. Apresentado o projeto de lei, a Câmara o aprovou em nove dias. Mas agora essa privatização terá de ser postergada para o ano que vem.
Nem conveniências táticas, nem as reconhecidas dificuldades para se levantarem as informações relevantes do setor público valem como desculpa. Ainda menos para um Governo como o de Fernando Henrique, que não tem a desculpa da improvisação. Ano que vem recomeça o carrossel político, com as eleições municipais, à qual concorrem uns 100 deputados federais. E em 97 realinham-se as forças para a nova eleição de Presidente, Governadores, Congresso e Assembléias estaduais.
Não há mais tempo para retórica. Seria irônico que a gestão de um dos homens mais lúcidos deste país acabasse por uma meia perestroika desengonçada, recoberta por uma glasnost opaca.

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