São Paulo, terça-feira, 7 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma questão de consenso

LEILA LINHARES BARSTED; ESTER KOSOVISKI; NORMA KYRIAKOS

Esperamos que o Estado brasileiro honre o compromisso que foi firmado em Beijing
LEILA LINHARES BARSTED, ESTER KOSOVISKI e NORMA KYRIAKOS
A propósito da reportagem da Folha de 19/10, "Sociólogas brigam em discussão sobre o aborto", sentimo-nos no dever de esclarecer que fizemos parte do grupo de advogadas que se reuniu, por iniciativa da ONG feminista CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), com a presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) para debater as propostas do movimento feminista para a reforma do Código Penal.
Mais uma vez expressamos, na ocasião, nosso repúdio à violência doméstica, ao estupro, à prostituição infantil e à criminalização do aborto, manifestando-nos sobre as propostas de revogação, derrogação e alteração da lei a esse respeito. Na realidade, nossas opiniões sobre tais questões já são, desde longa data, conhecidas do movimento feminista e de demais setores da sociedade posto que em livros, artigos, debates públicos, entrevistas à imprensa e assessorias a parlamentares temos, incansavelmente, nos posicionado a esse respeito. Em função de nosso compromisso com essas causas aceitamos assessorar a presidente do CNDM sobre tais temas, objetos, inclusive, de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional como, por exemplo, os projetos de descriminação do aborto cuja relatora, na Câmara dos Deputados, é a deputada Jandira Feghali, e no Senado, de iniciativa da senadora Eva Blay.
Nossa posição é coerente com o compromisso firmado pelo governo brasileiro na recente Conferência Internacional da Mulher, em Beijing, China, de "considerar a revisão das leis que contêm medidas punitivas contra as mulheres que realizam abortos ilegais" (parágrafo 107 K). Ao firmar esse compromisso, influenciado pelo movimento feminista, o Estado brasileiro avançou, colocando tal questão como prioritária na pauta das políticas públicas. Não podemos recuar dessa posição mínima.
Concordamos que nem o Estado nem a sociedade brasileira podem fechar os olhos à questão social acarretada pela punibilidade do aborto e às trágicas consequências de sua clandestinidade. Tal questão não pode ser tratada com hipocrisia, como se não existisse uma problemática que afeta um considerável número de mulheres brasileiras e suas famílias, em particular aquelas que não dispõem de recursos financeiros para interromper uma gravidez não-desejada em clínicas clandestinas seguras e que não têm acesso a serviços e métodos adequados de contracepção, assegurados pela Constituição Federal.
Convidadas a aconselhar a presidente do CNDM, conscientes de nossa responsabilidade social e comprometidas com a causa da Justiça, nos posicionamos, no que se refere especificamente ao aborto, pela necessidade de mudar uma lei que pune as mulheres e que é repudiada em grande parte dos países da comunidade internacional. Além disso enfatizamos, naquela ocasião, que a moderna tendência do Direito Penal, em sociedades pluralistas e democráticas, reconhece a necessidade de extirpar da Lei Penal comportamentos que, uma vez lícitos, trarão consequências menos gravosas à sociedade do que se continuassem no rol dos crimes.
Esperamos que o Estado brasileiro honre seu compromisso firmado em Beijing. Nós, advogadas feministas, continuamos com um forte consenso em torno da oportunidade da revisão da legislação penal, incluindo a necessidade de descriminalizar o aborto no Brasil. A forma de implementação desse processo pode apresentar diferentes estratégias, diferentes visões de regulamentações. Mas isso não significa um desacordo. Há entre as juristas feministas uma unanimidade quanto à necessidade de a questão do aborto entrar na pauta do Congresso Nacional, embora possa não estar, ainda, na pauta do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

LEILA LINHARES BARSTED, 50, advogada, é diretora da organização não-governamental CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação).

ESTER KOSOVISKI, 61, advogada, é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

NORMA KYRIAKOS, 56, advogada, é procuradora do Estado de São Paulo.

Texto Anterior: Impropriedades judiciárias
Próximo Texto: Clube de Negócios; Rabin; Sem informação; Lista premiada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.