São Paulo, terça-feira, 7 de novembro de 1995
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Tempos modernos

ANDRÉ LARA RESENDE

Déficit, dívida e inflação que me desculpem, mas ficam para a próxima. É que quinta-feira passada foi dia dos mortos. Finados, dizia-se, talvez por pudor em relação à morte.
Tempos modernos. O sexo é para ser exibido, e a morte foi proibida. Acho que não li ou ouvi uma única menção à data. Escapou-me, não pode deixar de ser, mas é significativo.
Os jornais estão cheios de mortes, não há dúvida, mas mortes distantes, estatísticas. O assassinato de um líder, como o de Rabin agora, é traumático, mas é diferente. Vem embalado no papel celofane, na impessoalidade dos grandes fatos.
Foi d. Luciano que, no sábado, a propósito do feriado da semana passada, tratou aqui mesmo do tema: morte, amizade e vida eterna. Coincidência ou não, eu lia sobre a amizade.
Em um belo livro, "Soul Mates", Thomas Moore afirma que a amizade não requer uma grande dose de ação ou de atividade, mas requer lealdade e presença.
Lembrei-me de uma história antiga. Um amigo, filho de um grande amigo de meu pai, morava com os avós. Político mineiro aposentado, o avô recebia toda semana, em seu apartamento em Copacabana, à mesma hora, a visita de outro velho e também aposentado político mineiro. Sentados, lado a lado, em silêncio, ficavam invariavelmente até o cair da tarde.
Intrigado, meu amigo perguntou ao avô como podiam ficar tanto tempo em silêncio, semanas após semanas. "Não há por que falar", explicou-lhe o avô, "eu já sei tudo o que ele vai dizer e ele já sabe tudo o que eu vou dizer."
A história sempre me pareceu uma comovente ilustração da essência da amizade. A ação e a palavra são, finalmente, dispensadas; a lealdade e a presença, não.
Pois no dia dos mortos não pude deixar de me perguntar se também a presença não seria dispensável. Longe de mim questionar a dor da morte de um amigo. Não tenho dúvida, morre-se parcialmente com a morte do amigo.
Acompanhei meu pai à clínica, também em Copacabana, onde tinha acabado de morrer Hélio Pelegrino. Senti a dor que nunca passou e nunca lhe permitiu escrever sobre a morte do amigo.
Mas vi também, nos anos seguintes até a sua própria morte, a presença permanente do amigo morto. Presença bem humorada, alegre. Diante de uma notícia, um acontecimento, um discurso político inflamado, meu pai nunca deixou de dizer com a maior naturalidade: "Vamos ligar para o Hélio para saber o que ele está achando".
Volto a d. Luciano. Um companheiro de seminário em Roma, nos diz ele, viu-se confinado à enfermaria. D. Luciano lhe fez companhia e a amizade cresceu. Antes de morrer, sereno, o amigo disse que de nada precisava, pois ia à casa do Pai. Seu olhar confiante não foi mais esquecido por d. Luciano.
Há algo de sagrado na amizade que fica depois da morte. Mas é preciso reaprender a olhar a morte e seus ritos de frente e não tentar varrer os mortos para debaixo do tapete.
A relação com os mortos nos dá o alimento de eternidade, de mistério e de melancolia que tanta falta faz nos tempos modernos.

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